o silêncio que podemos fazer é o silêncio que não podemos fazer
em maio de 2008 alguns jornais do df noticiaram a morte de uma mulher no paranoá, cidade satélite, por tentativa de abortamento. Tédia Rodrigues Maciel comprou "misoprostol", nome da fórmula mais conhecida como Cytotec, passou mal, foi levada pro hospital do paranoá onde morreu, 3 dias depois de tomar as pílulas, com uma forte hemorragia.
essa é mais uma história no meio de muitas. Tédia era uma mulher de 34 anos, negra, empregada doméstica de uma família rica no lago sul (o bairro mais elitista da cidade, conhecido mundialmente como campeão de desperdício de água) que explicitou, na sua contratação, que ela não poderia engravidar. ela já era mãe de outras 4 crianças.
as mulheres que o estado mais pune por serem mulheres são as negras e pobres. seja por medidas institucionalizadas, como a penalização do aborto - artigos 124 a 128 do código penal brasileiro, promulgado em 1940, atenção!, 6 anos depois que o voto feminino se tornou irrestrito (código eleitoral de 34) -, seja por meios institucionalizantes: tô falando de racismo, mesmo, que só foi considerado crime a partir da constituição de 1988.
a relação entre essas coisas é mais nítida y perversa do que parece. alguém pode perguntar "ok, mas o que tem a ver o racismo com a ilegalidade do aborto?". tenho reparado que, mais agora do que antes, nos debates sobre aborto tem aparecido muito a relação entre aborto y morte de mulheres negras e pobres, que provavelmente são as mais lascadas por abortamentos inseguros, ilegais, precários (eu sei que mulher rica tem grana pra fazer aborto clandestino mas seguro).
o que me incomoda nisso é o tom de assepsia social desses discursos. algumas pessoas falam, abertamente, que legalizar o aborto seria uma boa forma de conter o banditismo, como o governador do rio de janeiro, sérgio cabral, que comparou mulheres faveladas a uma fábrica de bandidos. as mulheres negras têm sido alvo de políticas de esterelização em massa desde que pra cá fomos seqüestradas, há mais de 500 anos.
ainda assim - mesmo não tendo direito a uma vida digna, segura, em que caiba a possibilidade de maternidades tranqüilas, desejadas, felizes - nos movimentos feministas y de mulheres há muitas negras gritando diretamente aos parlamentares que respeitem nosso direito a interromper uma gravidez, se assim quisermos. não só respeitem, mas assegurem condições de que possamos interrompê-las sem arriscar nossas vidas.
os parlamentares não ouvem. antes de barrarem, em maio de 2008 (três dias antes do aniversário da luana, a mulher negra que mudou minha vida definitivamente), na câmara dos deputados, o projeto de uma deputada em trâmite há ONZE ANOS que retira do código penal o aborto, eles tiveram que ouvir uma outra mulher negra, chamada Isabel, de mais de 1,80 de altura, gritando junto a outras negras como eu, luana y joelma e outras feministas não-negras, que mulheres querem a legalização do aborto.
não era o que tava em pauta. não era a legalização. era a não-criminalização (dá pra entender a escala que há nisso? pedindo um mínimo quando queremos, precisamos, merecemos muito mais...). alguns setores respondem: muitas mulheres não querem abortar. verdade. mas muitas querem. abortam. não deviam ser consideradas criminosas por exercerem um direito precariezado, desassistido, negado. quando não morrem, sofrem, são humilhadas nos hospitais - aonde vão em ÚLTIMO caso -, são perseguidas pela polícia, por familiares, por morais religiosas... mas, ainda assim, abortam(os).
a despeito de outréns agirem como donos de nosso corpo! se o estado, essa grande estrutura que reúne patriarcado, racismo e capitalismo pra funcionar, quer nos dizer que ele é nosso dono a partir de assassinatos institucionais (como resulta da criminalização do aborto) ou dos micro-lugares de manutenção de seu poder (como acontece com os diversos crimes sexistas cometidos por homens, de estupros a assassinatos a espancamentos a xingamentos a passar-a-mão-na-sua-bunda-na-rua), vamos continuar gritando.
vamos gritar nas ruas, dentro de casa, e mesmo em silêncio. às vezes fazemos silêncio. calamos sobre os abortos que fazemos com medo de toda represália que sofremos além do procedimento, cirúrgico ou não, violento y muitas vezes traumático. calamos sobre as violências sexuais, domésticas, inesperadas, institucionais que nos fazem passar. calamos porque nos cansamos, às vezes. mas também calamos porque podemos calar.
porque nossas vozes, mesmo sendo muitas, às vezes não bastam pra barrar 33 parlamentares. porque mesmo gritando na cara deles, eles não nos escutam e, depois de decidir que o aborto vai continuar sendo crime, a despeito de nós sermos as que estão morrendo ou vivendo precariamente depois de abortamentos inseguros, vão comemorar isso numa churrascaria, com mais morte e sangue de pessoas, dessa vez não-humanas, que não mereceram ficar vivas porque os homens decidiram comê-las.
podemos calar porque gritar cansa. podemos calar simplesmente porque é o que queremos. então, às vezes, é isso, nos calamos. mas nós não nos cansamos de gritar. nossa voz, nosso corpo, somos nós. vamos continuar fazendo com nossas vidas o que achamos melhor pra nós mesmas. quando isso significar levar uma gravidez adiante, levaremos. quando significar praticar um aborto, é isso que faremos.
clandestinamente enquanto tiver que ser assim. e mesmo sabendo que é provável que demore a deixar de ser assim (afinal, o estado não foi feito pras mulheres, nem por elas, mas sim depende da subalternização delas pra se manter), não vamos deixar de lutar pra que ele nos sirva, minimamente.