Manifesto pelo Balleckett
A estréia mundial do Balleckett aconteceu no dia 15 de novembro de 2006, com a contribuição de Godariush Sokolovely. Tocava o Silente na festa Oaxaca Libre! em plena flor punk da palavra. Quanto amor, e surge uma explosão de peles se agitando no ar.
Manifesto pelo Balleckett
Ballet é o corpo. Beckett é a alma. Balleckett é a condição humana com os cotovelos e joelhos em movimento. Somos todas inacabadas; somos todas nem começadas – nos tornamos todas beckettescas. Ballet é a alma. Beckett é a virilha. O ponto de partida de muitas felicidades humanas é uma conversa. O ponto de partida da conversa é uma substância beckettesca que existe em cada gengiva, em cada clavícula e em cada calcanhar. Ballet é calcanhar. Entre o plágio e a referência existem apenas três pétalas de diferença. Vamos condenar a uns poucos anos de trabalhos forçados disfarçados estas pétalas que tremem. Nunca temos coragem de copiar assinando o próprio nome. Nós, balleckettentes, trememos mais que as pétalas, somos varas verdes. Não assinamos o próprio nome em parte alguma. Assinamos o nome dos outros. Vamos condenar a uns poucos anos de improvisação as pernas que tremem: estamos dispostas a quase tudo pela construção de um mundo que seja 97% feito de água, fogo, terra, ar e aquela coisa macia com a qual se fazem entrelinhas dos textos de Beckett. Por isto nos juntamos pelos pores do sol, exigimos a abolição do capitalismo às 8 da noite de amanhã, instauramos o inferno do caos para substituir o inferno da ordem e ficamos a cada dia mais convencidas das seguintes noções:
1. A falta de uma coreografia minuciosa é bastante inconveniente. Mas pode se tornar um bem.
2. A falta da falta de uma coreografia minuciosa é um mal. Mas pode se tornar um bem também.
3. Aquilo que já foi perdido, já foi perdido. Aquele movimento involuntário que fez o queixo, o tornozelo ou a carótida, já esteve solto para quem quiser assistir.
4. Mesmo sem tempo para besteiras, temos alguns minutos para becketteiras.
5. Existem duas poções de necessidades impostas pelas forças da existência: a poção das necessidades que temos e a poção das necessidades que temos de termos necessidades.
6. A intuição nos faz fazer bem umas loucuras. Ela nos faz bem escapar de umas loucuras.
7. Que podemos dizer da vida que nunca foi dito? Muitas coisas. Por exemplo, que ela nem sempre é um gomo solitário de bergamota madura.
Se nós fossemos bailacketterinas confundiríamos todos os princípios com os meios e esqueceríamos os fins. Assim como somos, tenham paciência. Nossos joelhos são nossos cotovelos, nossas rugas são nossas pernas, nossas cópias piratas de palavras de Beckett são nossas sapatilhas de ponta. Não queremos nada a não ser sacudir todos os átomos que sustentam a sensatez estabelecida. Não queremos nada a não ser explodir todas as células dos pensamentos prontos. Não queremos culpar a razão por nada, mas ela vai ter que se comportar por que nós não vamos nos comportar por ela: dançamos a suspeita vaga e indolente de que não tem tanto sentido ter sentido. Improvisem provisoriamente: não adiem para o momento certo – o momento certo é o momento errado – queiram. Deixem para as estrelas e para os cometas as luzes apagadas e pelas trilhas onde já passaram as formigas pisem com a ponta dos umbigos. Improvisem tudo. Corpo é alma. Ballett é Beckett. Soltem estes grilhões coreografados. Ninguém nunca fez mais do que bailar becketts disfarçados. Arranquem os disfarces e, logo em seguida, saiam do chão com um plié ou um elevé ou um camier ou um mercier.
Queremos os gestos puros ao invés dos gestos ratos, apinhados de ninharias. Queremos os gestos desordenados, despedaçados, despreparados, desmiolados, desintegrados, dissimulados, desconectados e, de preferência, desabitados. Não há limite para a improvisação, nem nas mãos, nem a coluna dorsal te conta que deves calar os pássaros e escutar a voz do noticiário na televisão. Não preste atenção – finja. Não finja – finja que finges. Queremos os gestos que não caberiam em nenhuma pista de dança, em nenhum palco de dança, em nenhuma dança. Queremos dançar os gestos que jogamos fora – só porque eles não prestam para nada.
O movimento que não presta – um resquício de alguma outra coisa que se solta do corpo quando estamos ocupados fazendo algum gesto bem-intencionado, planejado, mal-intencionado, calejado. Balleckett é a dança que escapa quando ninguém está olhando – e nós queremos virar os nossos próprios olhos para o outro lado para deixar esta dança dançar (ou, pelo menos, balançar). Acreditamos que não se solta a beckettada acumulada em nossas juntas por anos e anos de orquestrações coreográficas só abrindo uma janela ou cavando um túnel por baixo do muro: talvez precisássemos de cuidadosas escavadeiras serialistas para soltar umas camadas de becketts sem órgãos de dentro de nosso foro íntimo. Uma série de doze movimentos, de doze intenções, de doze objetivos, de doze estados de ser, de doze circunstâncias armadas em série para acabar com as coreografias-ato-falho, com as coreografias-corpos-dóceis, com as coreografias-almas-doces e com as coreografias-polegares-amargos e começar a fazer gestos com pouca eira e nenhuma beira. Ballett é plástico voando ao vento, Beckett é lesma a esmo. Balleckett é a reciclagem do lixo da alma em latas de quatro cores diferentes. Vamos dançar na ponta do superego – sapatilha nele.