Fúria judicial contra as mulheres
NILCÉA FREIRE *
Está em curso, em Mato Grosso do Sul, um episódio assustador e de imensa fúria persecutória contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, no Brasil.
Nada menos do que 9.896 mulheres mato-grossenses estão prestes a serem interrogadas e levadas a julgamento, num só processo, no qual são acusadas de terem provocado abortos, desde o final dos anos 90, conforme decisão do juiz da 2ª Vara do Tribunal do Júri de Mato Grosso do Sul, Aloísio Pereira dos Santos. A decisão, historicamente inédita, é tão injusta quanto estarrecedora, apesar de encontrar amparo na legislação brasileira.
Em abril do ano passado, houve a instalação de um inquérito contra a proprietária de uma Clínica de planejamento familiar, com 20 anos de funcionamento no centro de Campo Grande (MS), acusada de praticar abortos. A apreensão de milhares de prontuários médicos daria origem ao processo em massa contra as quase 10 mil mulheres.
A delegada Regina Márcia Rodrigues Mota, que conduz o caso, afirmou que está estudando "a organização de uma força-tarefa para concluir os inquéritos e remetê-los à Justiça". O promotor de Justiça Paulo César dos Passos fundamentou: "A pressa é para evitar a prescrição do delito, ue ocorre em oito anos."
No ímpeto de condenar, a Justiça promoveu constrangimentos ilegais. Prontuários médicos, dos quais as instituições de Saúde são as guardiãs, segundo a legislação brasileira, foram apreendidos e colocados à disposição da curiosidade de quem quer que seja. Na seqüência, o juiz recuou, devido à grande procura - principalmente de homens - por interessados em saber o nome das clientes.
Qual é a real motivação de tamanha truculência? Será que realmente é o caso de se instituir uma força-tarefa como se estivéssemos tratando de uma horda de delinqüentes de elevada periculosidade para a vida em sociedade? Está sendo justa a Justiça? E a responsabilidade dos 9.896 homens supostamente associados àquelas gestações? Também será em algum momento lembrada e cobrada judicialmente?
O Brasil é signatário de diversos instrumentos jurídicos e acordos internacionais, entre eles a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as mulheres e a Plataforma de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, que visam a assegurar o direito à Saúde sexual e reprodutiva das mulheres. O aborto provocado é reconhecido, mundialmente, como um importante problema de Saúde pública, especialmente nos países cujas legislações restringem a sua prática, como é o caso brasileiro.
Enquanto a taxa de aborto por 1.000 mulheres é de 4/1.000 em países como a Holanda, no Brasil a estatística é 10 vezes maior: 40/1.000. Não há família, no sentido amplo, que não tenha vivenciado esse drama.
Esse descompasso entre a vida cotidiana das pessoas e a criminalização da prática do aborto fica evidente no episódio em curso na Justiça mato-grossense, além de comprovado por inúmeras pesquisas especializadas.
Para se ter uma idéia, segundo a pesquisa aborto induzido: Conhecimento, Atitude e Prática de Ginecologistas e Obstetras no Brasil, realizada em 2005, pelo Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp), aproximadamente 80% dos ginecologistas e obstetras ouvidos (3.386 profissionais) que viveram alguma situação de GRAVIDEZ indesejada em suas vidas (homens e mulheres) optaram pela interrupção voluntária da GRAVIDEZ, mesmo fora das possibilidades legais vigentes.
O mesmo levantamento, contudo, nos informa que cerca de 50% dos médicos respondentes à pesquisa e que trabalham em serviços públicos de Saúde, diante de um caso de aborto - ainda que previsto em lei - optam por pedir a outro profissional para que realize o procedimento.
Outro estudo do Cemicamp revela que, no âmbito do Poder Judiciário, quatro de cada cinco magistrados que vivenciaram uma GRAVIDEZ indesejada decidiram que a situação justificava a prática do aborto. No entanto, cerca de 50% dos juízes não abrem mão da exigência de alvará judicial para autorização da prática de aborto prevista em lei (casos de risco iminente de morte para a mãe e Estupro), procedimento desnecessário conforme as próprias normas jurídicas vigentes.
Esses indicadores demonstram que, quando estamos mais próximos de quem vivencia uma GRAVIDEZ indesejada, é maior a tendência a justificar a interrupção voluntária da gestação, ainda que isso não signifique alteração na rejeição ao aborto em si.
Todas as pesquisas de opinião revelam que a maioria dos brasileiros preferiria que nenhuma mulher tivesse que provocar um aborto. Mesmo aquelas mulheres que terminaram por provocar um aborto manifestavam opinião contrária a essa prática, até se verem na situação que as levou a optar pela interrupção da gestação.
O que está por ser aferido - e a reação da opinião pública ao caso das 9.896 mato-grossenses poderá contribuir para esse balizamento - é a taxa de rejeição a prisões de mulheres por aborto, na sociedade brasileira.
O primeiro passo foi dado, na semana passada, por um conjunto de organizações feministas e de defesa dos direitos das mulheres, que denunciou à Subcomissão da Defesa da mulher, no Senado Federal, a violação dos direitos humanos das mulheres no contexto do caso de Campo Grande.
Urge responder, no caso de Mato Grosso do Sul, se está sendo justa a Justiça.