carta do corpus crisis - coletiva feminista de micropolítica – em celebração das amizades entre mulheres, lésbicas ou não
Aos Cuidados da Casa Roxa
os acontecimentos recentes, motivados depois de uma acusação feita por um setor do movimento lgbt à Coturno de Vênus, coletivo lésbico-feminista de amigas muito queridas, nos deram ganas de escrever uma carta pública não só em resposta à acusação em si, mas como forma de homenagear e celebrar os laços de sororidade e filoginia entre mulheres.
sororidade é uma palavrinha que significa "irmandade de mulheres", e filoginia, por sua vez, é "solidariedade entre mulheres". entre outros mitos como a TPM, que é pra muitas mulheres, feministas ou não, entendida mesmo como uma maneira de patologizar e atrelar a doenças os lindos fluxos de nossos corpos, o patriarcado racista inventou outro, o da rivalidade entre mulheres. as novelas investem muito nisso, e também outros sistemas de dominação e propagação de uma cultura patriarcal, misógina, que não tolera a felicidade das mulheres e tenta boicotar nossos laços de afeto, amor e respeito umas pelas outras.
a Casa Roxa, ocupação auto-gerida que vem sendo cuidada principalmente pelas nossas amigas guerreiras da ONG Coturno de Vênus mesmo depois de ter deixado de ser um centro de referência lgbt, é um desses espaços em que podemos estar próximas umas das outras e compartilhar afetos, experiências, saberes, questionamentos, e até cosmovisões diferentes.
é importante falar sobre a diferença de cosmovisões porque elas, apesar desse nome bonito, muitas vezes aparecem como atritos políticos e ideológicos graves, fundos, às vezes inconciliáveis - e assim mesmo, nossos laços têm funcionado "a partir" desses afetos ou desafetos, mas nunca "apesar" deles.
significa que, como mulheres lésbicas (majoritariamente, já que o kk é uma coletiva mista), estamos aprendendo a construir nossos laços inclusive em momentos de rupturas política-ideológica-afetivas, muito também porque um outro mito próprio da investida patriarcal na construção de estereótipos do feminino é justamente o da passividade e não-conflito. e talvez por isso incomode tanto a existência de mulheres combativas que não esperam espaços serem cedidos: exigimos e, se não é suficiente, criamos nossos impróprios espaços.
para quem fique bem sombreado (porque claridade ofusca e todas sabemos que sombra é muito mais agradável e é o que destaca e deixa as coisas mais nítidas - um parênteses contra linguagem racista), o patriarcado não é uma entidade metafísica, nem um time de futebol no jogo da política estrita, não é uma conspiração dos homens contra mulheres; mas um sistema violento de poderes que combina machismo, sexismo, heterosexismos (heterossexualidade obrigatória), misoginia, homofobia, lesbofobia e controle dos corpos, principalmente de mulheres - mas também de homens colocados na posição de mulheres; com tentáculos que envolvem linguagem, privilégios, imagens, performances, instituições, regras sociais que se expressam de maneira mais ou menos visível através de piadas, discursos, novelas, cinema, propaganda, música, relações afetivas e sexuais, pornografia, enfim: em quase tudo que conhecemos, desconhecemos e preferíamos não conhecer.
estamos cansadas de explicar exaustivamente porque precisamos/desejamos (de) espaços nossos, escancarados pra gente... mas entendemos que essa afirmação faz parte de nossa luta por um mundo em que caibam mais espaços aconchegantes às mulheres. façamos um exercício só pra mostrar como tais espaços não surgem espontaneamente: quantas mulheres ocupam lugar de fala em paradas lgbt, em cima dos trios? quantas ocupam espaços de decisão que envolvem essas paradas ou o movimento lgbt em geral? ou porque a palavra gay faz referência hoje somente a homens? além de uma questão nítida sobre o vício em figuras de liderança (que demandam a existência de muitas figuras a serem lideradas, insistindo na verticalidade das ações e numa idéia vazia de representatividade), pensamos que nosso protagonismo não é cedido nem emprestado, é conquistado de maneira quase sempre conflituosa mesmo em ambientes "pró-Lgbt". colocar o L de LÉSBICAS na frente da sigla não resolve a questão secular do silenciamento das mulheres, ainda mais se é uma manobra discursiva que não tem correspondência no mundo-das-coisas-feitas.
não perceber a exclusão cotidiana das lésbicas no movimento lgbt não quer dizer que ela não existe, ao contrário: somente denuncia a existência de mecanismos perversos que funcionam para apagar esse apagamento. a imagem é bem clássica: quem ocupa a posição privilegiada da vez não enxerga a opressão que (re)produz. o que é bem mais grave quando essa posição é reivindicada por um homem que se coloca na posição de subalterno por ser gay e se acredita "acima de qualquer suspeita"... isso lembra feministas brancas da década de 70 muito criticadas por feministas negras e indígenas na décadas de 80/90 ao sustentar sua emancipação relativa aos homens brancos re-escravizando mulheres negras, índias, migrantes etc.
um projeto ativista lgbt que não passa por uma discussão sobre opressão sexista reproduz tristemente todo esse esquema, o que aparece de maneira assustadoramente nítida nessa mensagem que fala por lésbicas anônimas, supostamente representadas e automaticamente silenciadas: patrick, por que suas amigas não fazem essa denúncia elas mesmas? por favor, encaminhe essa mensagem a elas. se alguma parte do movimento de mulheres lésbicas não está acolhendo certas mulheres lésbicas, podemos conversar sobre isso entre nós. estamos aprendendo com nossos próprios passos, e um aprendizado que não tem receptividade a críticas (construtivas, colaborativas, honestas) pode ser incompleto.
não podemos esquecer que os homens têm nos acusado, historicamente, de sermos incapazes de nos cuidar por nós mesmas, resolver nossos problemas, criar alternativas a caminhos viciados. nem vamos nos esquecer que uma estrutura convergente entre misoginia e homofobia (para não falar em racismo) sustenta essa sociedade (heteros)sexista abençoada por um deus fundamentalista. ignorar essas conexões pode ser perigoso para projetos feministas e/ou lgbt: é dar tiro no próprio pé.
vamos continuar repetindo que somos irrepresentáveis, ninguém tem o direito de falar por nenhuma mulher lésbica ou não a não ser ela mesma. o cuidado com nossas vidas será feito por nós mesmas; certos ombros com genitálias masculinas (porque infelizmente nesse mundo absurdo contra o qual lutamos, um ombro não é só um ombro!) serão muito bem vindos desde que assim o sejam: quer dizer, que sejam convidados, que não invadam.
finalmente, uma carta como essa só reafirma a necessidade de um espaço como a casa roxa, mais um pedaço de ocupação feminista num mundo que insiste em não ter lugar pras mulheres além dos já desgastados.
em solidariedade, com amor e cuidado,
corpus crisis