DIREITOS DE MULHERES[1]
Riki Wilchins
Como esse é um livro teórico, deveríamos começar por onde toda boa teoria almeja ir antes que morra: a política. A teoria queer é, lá dentro do coração, sobre política – coisas como poder e identidade, linguagem e diferença.
Como boas pós-modernas (daqui a pouco falamos mais sobre essa palavra), é bom que tenhamos um pé atrás sobre as grandes narrativas que contamos pra nós mesmas – metanarrativas que parecem explicar eventos enormemente complexos através das décadas.
Isso não deixa de acontecer quando tentamos descrever o surgimento do feminismo gringo[2] moderno e do movimento dos direitos gays, que tocaram milhões de vidas e se espalharam por metade de um século.
Ainda parece seguro dizer que os a luta por direitos de gênero se origina nesses dois movimentos prévios por direitos civis, que, por sua vez, acham suas raízes na mãe de todos os movimentos desse tipo: a luta negra por direitos civis.
Porque é no movimento negro por direitos civis dos anos 50 e 60 que as ferramentas familiares dos movimentos modernos por direitos civis – mobilização popular extensiva, processos jurídicos, gerenciamento de mídia, gerenciamento profissional, lobby político, passeatas e protestos não-violentos –, todas elas, se juntaram pela primeira vez. Essa configuração específica funcionou tão bem, na verdade, que se tornou um molde pra muitos dos movimentos por direitos civis que a sucederam.
Por um lado, deveria ser desnecessário lutar hoje por direitos de gênero, já que gênero é o cerne mesmo da luta feminista que transformou as relações sociais entre mulheres e homens no passado século 20. É até difícil, hoje, estimar como as coisas costumavam ser diferentes.
Me lembro de uma discussão acalorada que se passou quando eu estava na quinta série: se às garotas devia ser permitido usar calças pra ir à escola. Era um tempo em que as garotas não iam crescer pra se tornar políticas, fazer medicina, trabalhar na construção civil, virar militares, nem tocar rock and roll. Elas também não corriam, jogavam basquete ou (pasmem!) puxavam ferro.
As mulheres eram donas de casa heterossexuais, e de comum acordo eram consideradas incompletas, socialmente e psicologicamente, até arrumarem um homem pra se casar com, criar filhos de e arrumar a casa para. Os homens trabalhavam enquanto as mulheres cuidavam da casa, criavam a família, e prestavam culto ao homem. De toda mulher com cerca de 25 anos era esperado que vestisse sutiã, cinta, meias e salto quando saísse em público.
Quanto aos homens, eles não levavam o lixo pra fora, nem ajudavam a lavar a roupa, trocavam fraldas ou limpavam a louça. Pensando um pouco nisso, talvez hoje não tenha mudado muita coisa. Mas em todo caso, os homens não empenhavam o tempo entre empregos pra ser “donos de casa”, explorar seus “lados femininos”, ou aspirar a ser “sensíveis”. Não tinha crise nenhuma da masculinidade; só tinha a masculinidade.
Quarenta anos de agitação feminista transformaram muito do que se desenvolveu desde aqueles tempos. Se assim quiserem, as mulheres podem fazer carreira fora de casa, assumir cargos de gerência, entrar pra polícia, se vestir confortavelmente e construir vidas independentes.
Ainda que reste muito trabalho a ser feito, muitas das reivindicações “radicais” feministas, sobre salários iguais, cuidado com a saúde das mulheres, violência doméstica, o direito de escolha de uma mulher e participação nos esportes, são agora aceitas como senso comum tanto pela direita quanto pela esquerda.
Mas esse progresso não veio a custo de nada. Era difícil disputar argumentos como “salário igual pra trabalho igual” ou “assistência de saúde igual para mulheres”, que esbarravam em quase todo o código básico de justiça gringo.
Daí os conservadores fizeram o que estava à mão, como não conseguiram atacar a mensagem: às vezes atacavam as mensageiras. Esse tipo de coisa ainda funciona – você pode ouvir Rush Limbaugh denunciar não só os argumentos feministas, mas aquelas “femi-nazis” asquerosas.
As feministas eram pintadas como raivosas, mal-humoradas, dominadoras, estridentes e agressivas – em uma palavra, caminhoneiras. Tudo que elas queriam era ser homens, ou até pior, algumas delas eram homens mesmo.
Se a palavra “sapatão” nunca chegou a ser dita, estava sempre lá, inaudita, no pano de fundo: um aviso pra toda e qualquer mulher, pra que soubesse até que ponto ela poderia empunhar seus argumentos antes que ela, e não o argumento, se tornasse a questão.
“Mulher-macho” era algo que nenhuma mulher queria se arriscar a tornar-se, e muito menos algo que o homem quisesse ver sua mulher – deixe a esposa fora disso – sendo.
Os conservadores insistiam na tecla do medo espalhado de que apontar a ineqüidade entre os sexos significaria demolir os papéis sexuais. Os homens iam se tornar afeminados, as mulheres iam se tornar masculinizadas. Os sexos iam se tornar virtualmente indiferenciáveis, e a vida como a conhecemos ia se extinguir.
Esse tipo de absurdismo lógico era mais notório durante a maior briga feminista: a Emenda dos Direitos Iguais. Essa legislação ia simplesmente ter tornado a eqüidade entre mulheres e homens uma parte da constituição, e é uma proposição tão óbvia que ainda tenho que me beliscar pra me lembrar que não foi aprovada.
Uma das mais efetivas metralhadoras apontando contra a Emenda era a idéia de que ela iria legalmente outorgar o fim das diferenças de gênero entre mulheres e homens e outurgar o estabelecimento de coisas como banheiros unisex. Tais argumentos generófobos[3] causaram, naqueles dias, uma enorme força de tração que – deixando o infame banheiro unisex de Ally Mc Beal? de lado – provavelmente ia existir ainda hoje.
Se o ataque aos direitos das mulheres não funcionava sempre, ataques ad hominem às mulheres demandando aqueles direitos funcionavam. As feministas eram obrigadas a segurar sua agenda política numa mão, enquanto defendiam ataques generizados[3] à sua vida pessoal com a outra.
O que é outra maneira de dizer que os direitos de gênero não eram parte de sua agenda política. O feminismo se ateve a garantir às mulheres os mesmos direitos que os homens em termos de acesso a oportunidades, salários e coisas do tipo, mas não o direito à masculinidade em si. Esse não era um problema de “separadxs mas iguais” tanto quanto de “diferentes mas iguais”.
Na verdade, como vimos, muitos dos direitos exigidos pelas feministas envolviam coisas consideradas masculinas: alcançar cargos de chefia, fazer esportes, não vestir cintas e vestir calças.
Contudo, o argumento não era de que as mulheres tinham direito à masculinidade, mas, antes, que tais atividades não eram essencialmente masculinas, e em todo caso as mulheres podiam realizá-las e ainda ser femininas. Isso foi o que estabeleceu as regras de gênero basilares sobre as quais muito do feminismo hegemônico (mas não o feminismo-lesbiano) continuou a operar: As mulheres podiam fazer qualquer coisa que os homens faziam e ainda manter sua feminilidade. Mulheridade[4] e feminilidade ainda estavam atadas a esse tipo específico de noções. A feminilidade das mulheres era oferecida como a garantia de que o feminismo não iria longe demais. Longe demais, nesse caso, significando ir além do gênero.
Se separadxs mas iguais não funcionaria porque sempre iria implicar em ineqüidade, o diferentes mas iguais ia ser melhor? Em um largo campo, funcionou notavelmente bem. E, em todo caso, a questão é vastamente irrelevante.
Os U$A não têm interesse em desmantelar os papéis de gênero tradicionais. Mesmo que o feminismo tenha ido atrás deles, está mais que óbvio que um ataque cabuloso teria operado, como logo iriam descobrir ativistas dos inícios do movimento por direitos gays.
Essa noção de como cada qual de nós deve parecer, agir e se vestir por causa de nosso sexo está profundamente arraigada em nossa sociedade. É o terceiro trilho dos direitos civis: Ataque tudo, menos o que eu geralmente chamo de gênero primário. Em termos legais, isso é chamado de “expressão e identidade de gênero”.
'''Há certa confusão entre “expressão de gênero” e “identidade de gênero”. Expressão de gênero se refere à manifestação de uma noção fundamental que o indivíduo tem de ser feminino ou masculino, representada por vestimentas, comportamentos, aparência etc.
Identidade de gênero se refere a uma noção íntima que a maior parte de nós tem de ser ou fêmea ou macho. O termo se origina na psiquiatria (Transtorno de Identidade de Gênero). É comumente usado pra se referir às pessoas transexuais e transgêneros, que correm mais o risco de sentir algum descompasso entre seus corpos e aquela noção íntima.'''
Poucas pessoas, hoje, olhariam com desconfiança para uma mulher CEO que ganha um salário enorme, com todas as armadilhas do poder e privilégio corporativos. Essas são mudanças estruturais em nossa cultura, símbolos da eliminação de barreiras culturais à justiça e igualdade.
Mas se finalmente é aceitável que as mulheres tenham empregos “masculinos”, exerçam poder “masculino” e pratiquem “esportes masculinos”, ainda é completamente inaceitável que as mulheres sejam masculinas. Mostre às mesmas pessoas uma mulher com corte batidinho, vestindo terno e gravata e fumando um cachimbo – efetivamente, com todos os símbolos pessoais de poder e privilégio de gênero – e elas vão ficar, provavelmente, chocadas, enojadas ou, pelo menos, broxadas.
Mulheres de terno e homens de saia anda nos deixam profundamente desconfortáveis. Os ataques vindos de conservadores culturais contra nosso direito à identidade e expressão de gênero funcionam precisamente porque provocam esse profundamente-estabelecido “fator éca”. Bem do tipo 'tudo bem que as pessoas sejam gays, desde que elas não ajam como gays “exibindo” isso em público – ostentando, andando de mãos dadas ou discutindo suas vidas sexuais –; geralmente queremos oferecer igualdade sem ser confrontados por isso.
E a pressão pra que as feministas se afastem de qualquer radicalidade aumentou ao ritmo das denúncias que os conservadores culturais fizeram acerca das organizações feministas serem lideradas por lésbicas, promovendo a agenda homossexual e eliminando todas as diferenças sexuais.
'''A cultura gringa sempre teve essa quedinha a uma ambivalência angustiada acerca das diferenças de gênero. A cada dois anos aparece outro esforço convulsivo de ancorar tais diferenças na Natureza, e nos convencer de que elas são fato inegável.
O The New York Times vai citar o mais recente estudo universitário sobre o tema, a Time e a Newsweek vão rodar matérias de capa sobre “As novas 10 diferenças entre Meninos e Meninas” e a CNN vai fazer uma matéria de 10 minutos sobre o tema.
Entre elas, há campanhas espasmódicas pra apaziguar nosso medo de que essas diferenças inevitáveis, “naturais”, sumam sorrateiramente no meio da noite, como cortesia de alguma das inimigas-públicas-número-01: feminismo, direitos gays, lares de mães ou pais solteiras, mudança de sexo ou hormônios nos estoques alimentares.'''
Tais ataques não eram contra a homossexualidade em si – com quem as feministas dormiam ou o que elas faziam na cama não era a questão. Pelo contrário, os ataques tinham a intenção de chegar diretamente aos anseios populares sobre os papéis femininos e masculinos, e eles conseguiram.
Em 1968, a Organização Nacional de Mulheres chegou ao cúmulo de expulsar qualquer membra que fosse lésbica ou bissexual, ou as suspeitas de serem. Mesmo que o banimento tenha durado um único ano, fez mais do que dar um voto de confiança aos ataques conservadores e, como previsto, os postos de comando da organização foram dizimados.
Feministas lesbianas, por outro lado, têm geralmente apoiado mais a expressão masculina de gênero às mulheres, especialmente dentro dos nichos de lésbicas separatistas. Ao mesmo tempo, o feminismo lesbiano aderiu, algumas vezes, ao pior do separatismo: um expresso antagonismo voltado a qualquer coisa macha, bem como uma tendência a fundamentar a mulheridade no determinismo biológico mais rudimentar. Às vezes isso serviu pra que feministas lesbianas fossem automaticamente hostis às pessoas transgênero. E isso é especialmente verdadeiro na academia.
Feministas lesbianas e “feministas radicais” acadêmicas fazem parte de uma histórico longo e desprezível de rotular mulheres e homens transgênero como exemplo de tudo, desde disparate e falsa consciência até artificialidade e surto patriarcal.
Isso finalmente começou a mudar, graças ao surgimento dos direitos de gênero e da teoria queer. Ainda assim, não é incomum que algumas lésbicas feministas fiquem tacitamente desconfortáveis com FT Ms? por abandonarem a comunidade para imitar homens, e com MT Fs? por invadirem-na imitando mulheres.
A hostilidade de algumas acadêmicas lesbo-feministas é um indicativo de como a questão do gênero toca um ponto nevrálgico. Uma lésbica me disse “eu não sou um homem. Não quero ser confundida com um homem e não quero estar perto de mulheres que eram homens”. Uma outra comentou “eu amo muito minhas/meus amigxs trans, mas elxs também me deixam triste. A gente costumava viver em uma comunidade totalmente caminhoneira, e agora elas estão todas saindo do armário como homens. Toda uma geração de caminhoneiras está sendo perdida”.
Em grande parte, os grupos de feminismo hegemônico continuaram a reproduzir aquela ambigüidade funda, da cultura dominante, sobre o gênero, e se mantiveram bastante silentes sobre casais caminhoneira/mulherzinha, crossdressers, transexuais e intersexuais.
De alguma forma, é fácil entender esse desconforto. Mas se você arranha a superfície do sexismo e da misoginia, quase sempre você acha o gênero. Isso não fica explícito só em nosso surpreendente pânico social e ódio quanto a questões de feminilidade e vulnerabilidade, mas também no fato de que, numa cultura macho-centrada, as mulheres vão ser sempre “o sexo queer”.
Com isso em mente, é justo perguntar se o feminismo vai derrubar completamente o sexismo sem que nomeie diretamente o direito das mulheres à masculinidade, à expressão e identidade de gênero. Como disse Patrícia Ireland, ex-presidente da NOW[5] e ativista do Gender PAC?[6], “revisitar o gênero como direitos de gênero é um passo natural para o feminismo. Os esterótipos de gênero ainda se encontram no cerne de muitos problemas que as feministas enfrentam até hoje”.
Por outro lado, o feminismo tem produzido muito de literatura e teoria ousada e provocativa sobre o impacto do gênero em tudo, desde os espaços públicos à saúde pessoal. A explosão de pesquisadoras feministas forneceu alternativas robustas ao pensamento convencional sobre razão e linguagem. Ela também refocalizou nossa atenção quanto às “párias” sociais, cujas vozes muitas vezes não são ouvidas pelo discurso ortodoxo. Nesse sentido, pesquisadoras feministas abriram o caminho à teoria de gênero pós-moderno, que explorou muitas dessas questões.
De fato, algumas das críticas pós-modernas mais subversivas (e populares) vieram de feministas acadêmicas escrevendo desde aquele híbrido de pensamento feminista e pós-moderno, conhecido como teoria queer.
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notas de tradução:
[1] Tradução feita por tatiana nascimento dos santos do primeiro capítulo de WILCHINS, Riki. Queer Theory, Gender Theory: an instant primer. Los Angeles, Alisson Books: 2004. Tradução para estudos na disciplina Feminismos e Teoria Queer, do Nedig – Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero (edição de 2010). [2] Referência ao país conhecido como U$A, que não é o único “estados unidos da américa do norte” - nota anti-colonial da tradutora, que escolheu usar o termo “gringo” como tradução do termo “American” usado pela autora. [3] Genderphobic, em inglês. [4] Genderist, em inglês. [5] Em inglês, Womanhood. Escolhi “mulheridade” depois de confabular com alice gabriel; o termo faz um paralelo à irmandade, mas com foco nas associações de mulheres. [6] National Organization for Women, http://www.now.org [7] Gender Public Advocacy Coalition, http://www.gpac.org/