"escuta aqui, o que é que sua mãe está fazendo que botou estas trancinhas na sua cabeça?" não suportando ver suas netas apresentando-se com aquele penteado, a avó de uma outra narradora esclarecia que "os senhores obriga vam as negras a fazerem trancinhas na cabeça da gente para não pentear os cabelos todos os dias; então os cabelos trançados duravam dois, três meses ... não podia perder tempo porque precisava ir para o campo capinar com a enxada... eu fiquei com esse preconceito. a trança traz uma memória negativa". pg. 66/67 de "feitio de viver", gizêlda melo do nascimento
sua avó ensinou sua mãe que ensinou a ela. não sabia quem tinha ensinado sua avó, mas não era improvável que fosse ofício aprendido pelas mãos de uma sinhá. se essas mãos seriam duras, cruéis, sádicas, perversas ou se foram mãos um pouco menos descuidadas, quem sabe arrependidas ou envergonhadas, ou mesmo mãos com nojo até pra um castigo, quem sabe. agora era um segredo delas, tradição delas, tradição mesmo que vira segredo porque o mundo gira e ninguém mais precisa de caixas de cetim pra guardar chapéus.
sua avó era uma mulher magra, doída, de olhos amarelos, mas que quando sorria, ah, ela sorria, e isso ninguém jamais conseguiu lhe roubar. tinha mãos de dedos cheios de calos, mas que soltavam seus cabelos. sua avó não admitia cabelo trançado, doía a lembrança do disciplinamento do engenho: até ali, até ali eles queriam controlá-las, domesticá-las, assepsia venenosa, até a glória majestosa de seus cabelos trançados era roubada delas, corrompida, envenenada.
chapéu era coisa de dona rica, elas eram quase operárias. chapéu é coisa de dona de cabelo liso, elas são pixaim. mas dona rica não sabe cortar o cetim como ele pede, contra o fio, sem amassar, sabe? dona rica sabe passar o cetim com ferro de brasa? sabe fazer costura invisível sobre o papelão mais duro que forra a caixa do chapéu, deixando-a firme? e ela sabia o que a vó de sua avó sabia, aprenderam de viver: as donas se faziam mais ricas com chapéu cobrindo seus cabelos pregados no couro, mas caixa de cetim como elas faziam?
dona rica nenhuma fazia. e elas, que faziam, nunca iam ficar ricas por causa disso. nem tinham ficado mais livres. o que elas tinham era uma coisa só delas, cada vez mais só delas, e menos de sua avó que agora morria, e em breve menos ainda de sua mãe, que também morreria, e aquilo ficaria nela até que ela também, enfim, morresse. deitada na cama minúscula sua avó, morrendo, sorria, lembrando da neta correndo pelo barraco vestindo caixa de chapéu de cetim na cabeça. e quem ia roubar isso delas?