Sou neguinha// Sou neguinha? ABRALIC 2000
Advertência:// Mergulho e saio com os pés sangrando. Cuspo as palavras junto com os dentes.// Isso não são fragmentos nem aforismos. São cacos de pensamento. Frases roubadas.
Pense bem são três imagens que se movimentam uma se fundindo na outra:
O negro gira a manivela, a neguinha que não se sabe, a puta numa esquina. O negro gira ou não a manivela nos desviando da rota? A puta vai ou não com o freguês. Pode recusar a grana? Estão na confluência do desejo de se afirmar a nação, ou não? São imagens do que não se definiu ainda, imagens da espera, metáforas do instante...metáforas daquilo que não se pode dizer, por não estar ainda, por ser intratável. Falo do que não é demonstrável, daquilo que não é documentável, não é documento de identidade, registro civil. Se segura, meu irmão, tô falando de coisas sem identidade, de terras sem gente. Tô falando do que é intratável no terceiro sexo, no terceiro mundo, no terceiro milênio.
1.
O negro é desdentado e tem um cobertor azul enrolado no pescoço, tia, me dá um trocado pra cheirar ali na esquina? tia, desvia esse olho gordo de cima da minha miséria. Aqui, seu delegado, isso num é filme não. Vou matar mais um , meu corpo tá fechado. O diabo cuida de mim... Preste atenção! Isso não é um filme!... A neguinha vai me levar pro lado do crime, vai me ganhar lá na esquina, vai me fazer de avião. A puta vende seu corpo amazônico, sua fonte de energia pras companhias italianas, suíças e espanholas. Vamos privatizar essa putinha diz o deputado no Congresso, depois limpa a boca suja de sardinha no pendão auriverde que a brisa do Brasil beija e balança.. Existe um povo que a bandeira empresta...Que navio é esse? Ri-se Satanás. ..
Pense bem são três imagens na iminência de qualquer coisa; qualquer coisa de repente...Pense rápido um projeto pro país.
2.
Por uma identidade neguinha. Deslocamentos rápidos da identificação para o enigma. Da afirmação da diferença para a positivação da indiferença não marcada, ambígua, angelical. Sobreposição do muque do negão à bunda da mulata. Contra a cultura calipígea siliconada, a favor do corpo tensionado no suor do trabalho. Corpo de homem no trabalho. Por uma corporificação do movimento contra as virtualidades midiáticas. São fotos em preto e branco, são instantâneos salgados com muita perícia e estética. A terra de pindorama está mais a frente, ainda não chegou. A manada vai na força cega do destino, na força fatal de Mario de Andrade. Se o Modernismo se faria sem os modernistas, o Brasil se fará sem os brasileiros? O Brasil se cumprirá um dia, one day? The day after?
3.
Pelo êxtase – estados gloriosos do corpo nas fotos de Artur Omar. Uma cultura da exteriorização, corpos tatuados como significantes puros. Signos opacos ilegíveis, indecifráveis, dançando na noite: raves, gls, mundos mix, cybers manos, na batida tecno acid dance. Os tambores perdidos na selva, os ilês, repercutindo em Carlinhos Brown, Mangues Towns, Lenines. Os raps dos Racionais M Cs?. Pense Oiticica. Pense parangolé. Pense a politização do êxtase. Pense a força dos parangolés girando no corpo do negro da favela, pense nisso, meu irmão. Pense a Arte pulsional no asfalto, pense o êxtase como uma pulsão em busca de uma forma, seja rápido no gatilho. Pense os mendigos de Joazinho Trinta, o Cristo embrulhado no saco de Lixo preto. Pense no luto como superação da dor. Encare de frente, sangue bom.
4.
Entre a brutalidade do fato e as interpretações da mídia, cave o espaço do imprevisível e do imprevisto, se solta malandro. Largue o controle, mas não se descontrole.
MV Bill Traficando informação. Embarque nessa viagem à cidade chamada de Deus. Abra os olhos , preste atenção na vida dura desses homens, parados na esquina. Confira a vida na favela. Confira esse mundo sinistro. Esqueça as ruínas do melancólico Benjamin, pense Brasil, pense uma solução pro Brasil. Deixa de lado essa história alemã, deixa pra lá do muro de Berlim, pense aqui, pense agora, pense Darcy. Pense um plano de Educação pro Brasil. Não seja otário. Vamos traficar informação. Os estudos culturais são peneira pra boa consciência dos scollars em seus gabinetes, com seus computers e internets. Vamos traficar informação. Os gays são os que compram mais. As mulheres monologam com suas vaginas. O orgulho negro sofre revista e morre nas favelas. MVBILL traficando informação. Olha o Rappa. Preste atenção nas letras do rappa: Me deixa que hoje eu tô de bobeira. Invente uma doença que me deixe em casa pra sonhar. Todas as ciências de baixa tecnologia. Todas as cores escondidas nas nuvens da rotina. Preste atenção, nas letras da rapaziada. Se vacilar o bicho pega e v. vai decorar o asfalto.
4.
O Brasil dançarino e afrodisíaco, a força dionisíaca sendo rebaixada, posta à venda pelo maistream. O neguinho do axé com uniforme Armani, remexendo a bundinha, o neguinho do pagode cantando com Gloria Stefano, a putinha anticastrista. Pense Brasil, meu camaradinha, não venda o corpinho, não desafie os santos. Olha a encruza! Cuidado que o feitiço se volta contra o feiticeiro. Pense Oswald ! Cuidado com a macumba pra turista ver , não seja uma Anta. Não se transforme em fetiche.
5.
A questão se dá para além do exterior e do interior. Não se trata de substância, nem de conteúdos, mas de a expressão momentânea não se deixar capturar em diluições perigosas. A força estará com quem tiver rapidez suficiente para desabalar as estruturas de poder . Duvide. Pense rápido, pense Oswald e se crie na utopia antropofágica, mas fique atento, tudo é perigoso e o Global nem é divino, nem maravilhoso. Pense rápido! Pense geração modernista, pense um projeto pro país. Segura onda , seu moço, que nem tudo que é bom pra eles faz uma nação.
Segura a onda, seu guarda, não machuque a moça! Não machuque a cidade! Não erre o tiro e acerte o coração do país.
6.
Vamos tirar as idéias do lugar, vamos pôr tudo fora do lugar, vamos pôr fora, seu Roberto. Estamos por fora, estamos na periferia, estamos no olho do furacão. Não dá pra fazer uma .Aufklärung. Vamos ficar na luz difusa de um abajur lilás, vamos ficar no cafofo, pensando rápido, pra não pisar em falso, pra pisar nos falsos profetas, nos que esquecem o que escrevem, nos que escrevem e não lêem. Pense rápido, nem tudo tá na Internet, tem coisa no mamulengo, tem coisa no meio da rua, vem um rumor, vem um clamor do meio da rua. Quem é? É o diabo, seu Roberto, no meio do rodamunho. Tá tudo saindo dos lugares, o negócio tá vindo na contracorrente, vem aí um movimento, vão invadir a praia, vão jogar ovo no ministro, passarão por cima de sua cova. Pense rápido. São notícias de uma guerra particular. Os homens de bem são os homens certos no mundo errado. São moscas que os deuses espantam. Pense rápido e não pise na moça, cuidado com o guarda que pode vir pela direita.
7.
O bicho vai pegar! Sem essa de desterritorização, vamos demarcar as terras, vamos ceder as glebas, vamos em frente que atrás tem gente na tocaia, seu Chacrinha. Fique atento ao movimento, leia as palavras de ordem e progresso nas bandeiras vermelhas: Ocupar, resistir e produzir. A Amazônia é o pulmão do Brasil, segura a Amazônia, seu moço! Antes que os aventureiros e os desventurados. Olha o assentamento aí, gente...É tudo free, vamo embora. Tão querendo alugar o país. Chame o síndico, chame o cinismo pra ver o charme indiscreto da intelectualidade pos-moderna abaixo do equador, Olha a fumaça. Onde tem fumaça tem fogo. Onde tem fogo? Confira o que diz D. Serafim: “O que é reto, o que é verdadeiro é verdadeiro. Tudo que é mentira tem de ser descoberto. Nós temos de procurar a verdade doa a quem doer. E quem é culpado tem de sentir-se pelo menos que é culpado, que fez uma coisa errada. Acho que tudo que se possa descobrir para o que o povo saiba, tome consciência, tem de ser feito. Muita gente vê esse problema como coisa do passado. Vejo muito mais esse problema como do futuro.”(JB/ 18/06/2000)
8.
Pão , pão , queijo quente . O negócio está esquentando , meu camaradinha. Tá atento? Tá sentindo o cheiro da confusão? Se segura, malandro, me segura que vou ter um troço.
9.
Mas tem coisa que é diferente. A literatura é diferente. Na literatura existem muitas verdades, mas o melhor é poder mentir, inventar. É delírio. É coisa sonhada. É o domínio do artifício, da mentira. Até descobrirem o mapa do genoma literário, ela escapa. A Literatura é a tralha do genoma, os 97 % sem função. Então se entende a leveza e a mobilidade como esses deslocamentos de perna de Salomé no filme de Ken Russel, tão rápidos que confundem os códigos, menina ou menino? A Literatura é neguinha. Ë puta na esquina. Preste atenção no que a Ana diz, sangue bom, literatura não é documento. Não é mole não, meu irmão. Tanto esforço teórico pra nada e foram publicar as cartas da menina. Tudo vira documento pros vampiros das letras. A Crítica literária virou fuxico de comadres. A crítica trepa de meias. Mas, a literatura é uma neguinha que não se sabe. Embaixo da saia, no meio das pernas, ela esconde um segredo. A literatura é segredo e substância. Manda mensagens ambivalentes diz o que quer e diz o que não quer. Presta atenção no segredo, rapaz. Se desoriente, rapaz....Nem tudo é construção cultural, nem tudo é performance, ainda tem o secreto nesse jogo, ainda tem coisa escondida, vai lá e confere, se tem coragem, no meio das pernas da neguinha tem um segredo... É uma fenda? É um pau? Tome coragem, levante a saia da neguinha, toque essa coisa quente... Não esfrie a neguinha, não tenha medo de tocar na coisa. Tire os óculos pra ver o pior. Enfie o nariz, cheire. Tem cheiro de flor e de desinfetante. Pode cheirar maresia, pode ser cheiro de pus. Aquilo é uma cloaca, é o fim da picada. Tudo ali contamina. Cuidado com a hiper- racionalização, cuidado com os discursos da política, com a falta de humor, de sensibilidade. Seduza a neguinha meu cama.rada... Enfie sua língua e deixe sangrar, deixe queimar....
Pra que serve a literatura?