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A Belezae Branca

a beleza é branca

minha irmã é uma das pessoas mais bonitas que já vi. desde pequena. lembro que uma vez, andando na rua, encontrei um homem com duas meninas pequenas, y uma delas era muito parecida com minha irmã quando era criancinha. fiquei tão emocionada que chorei. mas não quis ir até lá conversar com elas/ele porque me cansa um fetiche social absurdo que há em torno de crianças negras1.

eu não queria fazer parte dele mesmo sendo negra. não só porque, como diriam, sou "pouca tinta", correndo o risco de não ser reconhecida como negra por aquelas 3 pessoas. mas principalmente porque tento não reproduzir algumas coisas que têm me matado, matado minhas famílias espalhadas, desconhecidas. muitas vezes perguntaram à nossa mãe, branca, se minha irmã era adotada.

outras vezes vinham comentar que ela era uma 'criança negra muito linda'. às vezes me permito a ingenuidade de achar que todas as crianças são lindas. mesmo as feias - já vi muita criança feia, y definitivamente não sou uma entusista dos bebês -, mas de alguma forma muito especial elas conseguem ser fofas em seu ineditismo no mundo. no caso das crianças negras, confesso, sempre achei elas mais bonitas, mesmo.

comecei essa percepção vendo as fotos da minha irmã. não significa que acho que as outras crianças são feias, ou mais feias, ou menos bonitas. não é isso, não é uma escala. começou antes do meu esforço pra des-domesticar minhas percepções estéticas sobre negritude y branquitude que, mais tarde, culminaria em minha decisão de não ficar mais com pessoas brancas.

mas acho que isso fica pra outro texto. voltando à minha irmã, depois de crescer ela continuou ouvindo coisas como 'você é uma negra muito linda'. comentário racista pagando de bonzinho que não consegue disfarçar seu veneno: o espanto dessas duas coisas juntas: beleza y negritude. é por isso que eu acho que a beleza é branca. como muitas coisas que se tornaram condenáveis não por seu em-si, mas pelos usos perversos, viciados que fizemos delas, a beleza é branca.

tenho ficado cada vez mais neurada com isso. quase sempre que ouço alguém branco falando, sobre uma pessoa negra, "fulanx é tão bonitx", me pego investigando os traços da pessoa (comentada). como é o nariz dela? o cabelo? ele é gorda ou magro? tem estrias, celulite? principalmente, qual é o tom da pele? fico buscando traços de branquitude pra ver se o comentário foi, de alguma maneira, motivado por eles.

"ela quase se parece conosco", esses comentários parecem dizer. me dão vontade de vomitar. de gritar. de jogar tinta vermelha na roupa da pessoa pra ela ficar marcada como racista por onde andar (lembrei do gui, em uma de suas lindas aparições públicas, falando sobre as tintas com que nos pintam. a tinta do racismo. do sexismo. da homofobia. na época ele não falou da tinta do especismo, talvez tenha falado da do classismo - ok, isso não é uma prova em que temos que marcar mais itens pra sermos mais 'da real', 'combativxs de verdade', mas é possível fazer algumas enumerações. às vezes necessário -, mas mais recentemente nos falamos y ele disse que tá vegetariano há um tempo).

lembro da preta gil. que ficou um tempão afirmando sua beleza gorda pra depois fazer lipo-aspiração. lembro também daquelas que fizeram um seriado, lembram? uma delas, depois de um tempo, fez plástica no nariz. lembro das cantoras de rap nos eua, como é nítido que a ascenção de suas carreiras acompanha um embranquecimento de suas aparências!: cabelos cada vez mais lisos, cada vez mais loiros, elas cada vez mais magras (missy elliot lembra vocês de alguma coisa?).

lembro das poucas meninas pretas no hardcore. como elas não se enquadram. porque não têm cabelo liso pra cortar franjinha, porque muitas das que conheci eram de periferia y não tinham grana pra um visual mais plastificado-pero-clean, usando roupas meio toscas mesmo, um visual mais próximo da galera punk no comecinho ("laranja"). sem falar do racismo indizível que existe por trás da cultura da tatuagem... quantas não se tatuam porque acham que 'não pega' na nossa pele... quantas não gostam de sol.

tem muito exemplo. vocês devem estar se lembrando de outros que não conheço. se fôssemos juntar tudo isso, todas essas histórias tristes que nos conformam (às vezes nos fazendo fortes pra crescer, mas muitas vezes só nos destruindo mesmo), ia dar pra chorar um monte de lágrimas. ia dar pra juntar um monte de raiva. ia dar pra juntar um monte de gente. y talvez desse pra (re)começarmos a (re)pensar essa aliança indisfarçável, por mais que dissimulada, entre beleza y branquitude.

não adianta só dizer 'negro é lindo'. desculpa, gente. sei que estamos tentando isso há um tempão. mas acho que, além disso, temos também que questionar o próprio cerne da beleza. o que é não-lindo? por que as coisas têm que ser lindas ou não-lindas? o que se esconde por trás da beleza? quais são os padrões, as exigências, a magreza, a limpeza, a assepsia, a roupa-lavada-y-passada, o bom-comportamento, o comportamento sexy, que dentes perfeitos, que olhos claros, grandes, sem remela, que pele sem espinha, que altura entra, que gordura tem que sair, que tipo de sorriso, que timbre de voz cabe no nosso padrão estético, por mais amplo que tentemos alargá-lo?

a beleza é branca. porque essa maneira maniqueísta, descontinuada, linear de pensar as coisas é branca. ocidentalizada. paga tributo a coisas que, em outras instâncias, abominamos. nós, "os libertários" (gente, estou com um nojo dessa alcunha! por favor, não quero saber de gente libertária na minha vida mais não. só gente que é tosca mesmo, que não fica fazendo piadinha sobre contradições/oitavos-andares, que não promete novos mundos mas não consegue nem ser inteiro pra si mesmx. y culpa os prazeres. mas nunca eles serem um imperativo. enfim, quem sabe isso não vira outro texto, mas pra mim chega.), embranquecidxs y ocidentalizadxs.

a beleza é branca. é magra. é dolorosa. opressiva. não quero ser bonita não. se o que sobra a isso é a feiura, então tá bom. quero ser bem feia mesmo. porque não sou branca, nem nunca quis ser. y tô cansada de gente branca me medindo. como também cansada de gente preta que fica se medindo pelas brancas. eu não caibo, mesmo, nesse lugar. sou muito complexa, sou doida, sinto demais, penso demais, foda-se o que pensam as pessoas brancas y as pretas que pensam como brancas, y me(mal)tratam como brancas. sou só uma pessoa feia que gosta de ser feia mesmo, y acha ótima sua não-branquitute (nem bonita nem feia, mas "ótima"), mesmo não sendo "preta o suficiente" pra não ser chamada de "pouca-tinta" por gente preta amiga.

há uma guerra racial contra nossa não-beleza. y toda vez que entro no ônibus (nas poucas vezes em que consigo sair de casa) eu vejo que estão querendo que a gente perca. vejo isso no massacre do cabelo das minhas irmãs desconhecidas, mas perfeitamente reconhecíveis. chapinha, alisamento japonês, tem muitos nomes, mas o significado é sempre o mesmo: massacre.

y aqui estou, mais um dia, sob o olhar sanguinário de tantos vigias, com minha feiura como escudo. eu estou vestida com as roupas y as armas de jorge. aquele, da história com o dragão. mas nessa história o dragão sou eu.


1 - esquizofrênica y simultaneamente à política racista de escolha de crianças pra adoção, por exemplo. as crianças negras estão sempre entre as menos quistas. propagandas, idem. tratamento de crianças nas escolas, idem. vida cotidiana, idem. repetição que não traz costume. (volta pro começo!)


a beleza é branca, e o valor é o homem?

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Pagina modificada em 30 de May de 2008, às 19h49