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Carolina Maria Esbarra Em Gilles Deleuze

Carolina Maria esbarra em Gilles Deleuze

Quem trabalha como eu tem de feder.”

“Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado, nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino” (Glauber Rocha, Eztetyka da fome)

“A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço de céu para fazer um vestido” (Carolina de Jesus. Q Despejo, p.25)

Dear, Deleuze,

Procuro estar junto a você dentro desta bolha asséptica, procuro respirar no seu ritmo esse ar rarefeito, nossas bocas embaçando de ar cálido o plástico, procuro seu rosto desviante, tento segurar suas mãos. Suas mãos brancas e finas, mãos burguesas, mãos de intelectual, cuja única aspereza pode ser notada nas pontinhas dos dedos amarelos de gauloises talvez, suas unhas imensas, moles e sujas voltam-se contra a carne e os dedos anelares apontam para a boca que já foi bela. Fico fascinada por essas mãos que comunicavam ao papel a eletricidade de seu pensamento nômade.

Na bolha o tempo - o cristal tempo - está em suspensão. Então, podemos compor com nossos corpos imagens antigravitacionais num devir incessante e alucinado. Esticando nossas espinhas, encurvando-nos, tocando o plástico com as pontas dos pés, numa dança cômico-macabra. Materialidade tensa como você gosta. Nós dois, dois cérebros exaustos, dois sexos mudos e cansados.

Foi nosso pai louco e sifilítico, espécie surtada de filósofo dançarino, quem nos colocou nesse ovo, para que pudéssemos respirar - sem sufocar - o ar do mundo filtrado por nossas leituras. Leves, nesta bolha, não enfrentamos o caosmos do real, estamos infensos à multiplicidade enervante do mundo das coisas. Fora da bolha, nada se repete, tudo é diferença, mas nós repetimos os mantras da não-metafísica, lutando contra nós mesmos. Somos um ovo gigante parido pelo pensamento Ocidental, fugindo do Pai que nos persegue a marteladas.

Estou aqui e quero fixá-lo em mim, engatá-lo ao meu corpo e você não precisa temer. Quero ser seu duplo, quero ser você, quero repetir suas frases sofisticadas, pensar a complexidade dos fenômenos, dar um toque erudito e belo esfregando a língua nessas lindas línguas mortas que você domina tão bem: o grego, o latim, o alemão e o francês. Gosto também de roçar seu corpo. Como um gato je frotte ta peau, provocando em você uma certa repulsa que se resolve numa careta desconcertada. Não consigo entender por que você rejeita os animais que se esfregam, sempre achei que seu sistema de idéias se esfregava como seixos deslizantes pelas experiências. Você balbucia alguma coisa, buscando uma linguagem nova, que não se arraste pelo senso comum, pela infindável cadeia das interpretações, uma linguagem selvagem, bárbara, que me faça ver claramente o quanto você não suporta essa proximidade incestuosa, esse arroubo de desejo fora do âmbito das palavras cujas possibilidades significantes podem proliferar sem nunca s´arreter, mon cher. Na bolha, estamos a zero. Temos de inventar novas origens, o reservatório de idéias funcionando como uma fábrica, como uma máquina, desejante como uma Barbarella numa sex machine. Idéias delirantes, que não se estacam, não se deixam transformar em carne, no fato bruto da carne. Na brutalidade dos fatos. . Nós... gêmeos no ovo ainda... podemos experimentar toda a radical solidão do mundo quase silencioso das letras, mundo no qual apenas se percebe o ruído abafado de páginas e mais páginas sucedendo-se tristes e monótonas. Sentimos o peso dessa solidão e rolamos nosso ovo até próximo à janela que se abre para o mundo real. Perigamos cair no mundo das coisas: o mundo das cores quentes.

A bolha começa a ficar mais e mais apertada. Do espasmo de um ectoplasma insólito- uma força confinada prestes a se libertar - começa a surgir a figura da negra. O corpo quer tomar forma como nos quadros de Bacon. O calor que emana deste corpo parece aquecer terrivelmente a bolha, o calor suado dos tristes trópicos brutais. Vinda de esquálidas mitologias, do sujo das favelas, do pouco, da privação reconheço a escritora Carolina de Jesus. O corpo da negra, tenso e magro, meu corpo frouxo e expectante e o seu, dear Deleuze, concentrado e crepuscular. Suas unhas podiam ameaçar minha pele sensível, mas não a curtida pele da negra. Seu corpo, my dear, fede um pouco a mofo, a cinzas, a civilização. O da negra exala o cheiro dos esgotos a céu aberto, odor de carne podre, a viande putrefata do seu pintor preferido. Carolina avisa “ às oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o dor dos excrementos que mescla com o barro podre” (Q.D.p.33); mas eu...eu disfarço o meu cheiro com um suave CK. Eu estou na mediação; bem no meio entre o pensamento europeu e o instinto de sobrevivência terceiro mundista. Fiz com cuidado todas as lições de casa, li as últimas novidades e posso repetir, com uma certa elegância, os modismos críticos sem correr muitos riscos. Mas diante dessa estupenda aparição não sei mais o que fazer. Dou as costas aos dois pois não quero testemunhar a cena de absoluta abjeção. Carolina é o seu outro absoluto. Tudo bem desde que ela fique onde está, não é mesmo? Fique apenas a possibilidade de você exercitar - à distância - a frátria contra o pátrio poder, desde que ela não dispute com você a Sécurité Sociale.

Ao contrário de você, ela ama os gatos, porque não se entregam aos seus donos; para ela “o gato é um sábio. Não tem amor profundo e não deixa ninguém escravisá-lo. E quando vai embora não retorna , provando que tem opinião” (Q.D.p.125). A negra agora também se estica como um em torno de seu corpo retesado de susto. Carolina esfrega a língua vermelha e áspera na maciez desse contorno filosofante. Nossa Alice negra e feia sorri como o gato absurdo, sorri sem os dentes, sorri gengivas. Esse buraco vermelho quer sugar-nos. O corpo da negra é sustentado por uma vontade férrea. Carolina quer que você a veja com o olho de seu estômago francês, quer que seu olho satisfeito se perca no buraco da fome, na cloaca que dói sem parar. Ela sussurra em seu ouvido: “ percebi que no Frigorífico jogam creolina no lixo, para o favelado não catar a carne para comer . Não tomei café, ia andando meio tonta . A tontura da fome é pior do que a do alcool. A tontura do alcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago” (Q.D.p36) Carolina está sempre com dor de estômago, nervosa interiormente e em falta. O povo que falta, conforme você gosta de falar, excede em Carolina. Ela é um excesso histérico perturbando a calma e luxuosa impassibilidade francesa. Excede porque é excessiva a fome, porque é excessiva a degradação das condições da vida que leva, porque também tem excessiva imaginação e capacidade de se virar catando, no monturo do Lixão, comida e literatura. “ Tenho um apetite de leão. Então recorro ao lixo” . (Q.D, p.80) Carolina literalmente arranca do invivível o alimento do diário. Ela quer agarrar o sol com as mãos (Q.D., p79). Ela torna a falta um excesso.

Ela tem de catar a sobrevivência no lixo. O caso é fazer literatura deste regime concreto, nada simbólico – de privação. Ela está nos tacos, my dear, e fixa a órbita triste dos seus olhos sobre sua boa digestão européia. Carolina tem fome de literatura, quer ser escritora, mas não do que você chama de literatura menor. O caso dela é com Harold Bloom, ela é canônica. Carolina “detesta as mulheres da favela” e seus desbocamentos; gosta na verdade das frases ricas que leu nos livros. Frases como “ o astro rei deslizava no espaço....o sol está tépido”. Carolina é exótica, mas não admite que v. a ponha de quatro no Jardim Zoológico da literatura menor, junto ao Kafka e as suas complicações com o pai. Carolina desconhece freudismos, tudo gerou a partir dela própria sem machos. Carolina é o pai e a mãe de Vera Eunice, de João José e de José Carlos. “ Não casei e não estou descontente. Os que preferiu-me eram soezes e as condições que eles me impunham eram horríveis” (Q.D, p.11) Ela é muito territorializada. Seu território é a favela do Canindé, a favela dura de São Paulo, de quase cinqüenta anos atrás: “A favela é uma cidade esquisita e o prefeito daqui é o diabo” (Q.D., p.77). Favela sem o samba carioca. Carolina quer sair da favela e pertencer ao território da Literatura Maior. Dá para você entender, my dear? Ela quer a Língua Portuguesa da Academia de Letras, quer o fardão de ouro e o poder, quer o seu poder. Não deseja o gueto da resistência, quer a potência máxima dos marimbondos de fogo, se é que você pode entender.

O político - para Carolina - são os políticos: “Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos” (Q.D, p.25). Posso perceber como você, ao ouvir Carolina, esboça um leve sorriso gratificado pela a carga de afetos, perceptos e conceptos na frase que, se pudesse, anotaria para um belo artigo sobre o povo revolucionário, o povo do devir. Nem percebe que Carolina lança um olhar enviesado e mau na sua direção. Esquece que nela se concentram outras tantas Bertolezas e Macabéas dando pasto aos intelectuais. Mas a fome é professora, my dear. Nem público, nem privado, nem povo do devir. O negócio tem de ser pra já e quem vai entrar em transe somos nós dois. Com esta negra a história é diferente porque ela escreveu afinal o livro, entrou no nosso circuito, ela está aqui dentro da bolha conosco e a bolha se estreita cada vez mais porque o corpo da negra cresce semelhante ao de uma giganta. Estou suando, parece que vou desmaiar. V. tenta seduzi-la com suas frases de efeito, desaba sobre a mulher uma estante de livros. Ouço Carolina dizer perto de seu rosto: “ Parece um sabiá e sua voz é agradável aos ouvidos. E agora o sabiá está residindo na gaiola de ouro ... . Cuidado sabiá , para não perder a gaiola , porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas . E os favelados são gatos. Tem fome.” (QD.,p.27) Mas você teima em ignorar o aviso, está fascinado pela diferença ou pela differance? Eu estou com medo e começo a achar sinistra aquela entrevista com sua declaração contra os gatos, neste momento tudo aquilo soa como um cruel presságio. Quero sair deste círculo vicioso de leituras. Começo a sentir as vibrações do corpo dela, começo a sentir as dores de estômago, as náuseas. Eu tenho fome de quê? Começo a sentir culpa. Não deveria ter deixado Carolina se meter aqui na bolha com a gente, não deveria ter metido v. nessa embrulhada, eu poderia tê-lo simplesmente amado? Foi tudo um erro. Não é possível fazer essa mediação, estou para desistir. Nem você entende Carolina, nem a negra quer entender você. A rústica e bela poesia deste diário nos afetou sem remédio. Sinto que corremos perigo. Perigamos ficar a nenhum. Deus é sóbrio , como a escritora costuma dizer. E pode ser que estejamos agora confrontados com a sobriedade de Deus quando temos de encarar a fome desta mulher, acostumada a retirar alimento do lixão que é São Paulo. Talvez agora nossa bolha esteja realmente se deslocando para o Quarto de Despejo da cidade de São Paulo. Talvez agora nosso ar rarefeito já tenha começado a se contaminar com o cheiro da favela e, querido, talvez já estejamos realmente começando a feder...

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Pagina modificada em 15 de April de 2008, às 13h48