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Cine RitzCine Ritz Minha memória é fraca e eu já tive tantas posturas com respeito a cinemas como o Cine Ritz {um famoso cinema pornô de Brasília - que também existe em Goiânia}, que quando tento me lembrar se já fui ao Cine Ritz me confundo - não sei se é só imaginação que algum dia entrei dentro do cinema, fiquei excitado e entediado e saí dele me sentindo miserável. Não importa. Tenho uma multidão de homúnculos dentro de mim que me puxam pelo braço em direção à pornografia. Imagino que estes homúnculos vivem na pele, no sangue e na cabeça de muitos homens. Não sei de onde eles surgiram. Às vezes me pergunto se eles nasceram comigo; às vezes penso que não nasci homem, tornei-me homem e os homúnculos ensinaram uma parte da lição - ou melhor, uma parte da lição foi que eu devia enfiar estes homúnculos dentro de mim. São muitos homúnculos que me puxam mais ou menos para dentro do cine Ritz. Mas vou eleger um representante deles e convidá-lo - posso apelida-lo carinhosamente de Ritzículo. Tenho também outras multidões de homúnculos dentro de mim, por exemplo, aquele que abaixava a minha cabeça quando eu saía miserável do cine Ritz. Estes homúnculos me dizem que qualquer pornografia inventa desejos em mim, desejos que esquartejam as mulheres, as enxergam como uma boceta a ser fodida, desejos que me fazem associar prazer e dominação, ocupação, subjugação. Estes homúnculos sentem em sua pele o arrepio do erotismo puro que Audre Lorde uma vez encontrou em simplesmente conectar com as pessoas, apenas por conectar: Estes homúnculos têm orgasmos múltiplos lendo gente como John Stoltenberg ou Andréa Dworkin. São também muitos os homúnculos que têm estes orgasmos. Mas vou escolher apenas um representante para convidar - posso apelida-lo de Dworkínculo. Os dois, Ritzículo e Dworkínculo são homúnculos que vivem discutindo dentro da minha cabeça, na pele da minha mão, entre os poros das minhas costas. Eis um dos diálogos que eles travam: Ritzículo: A pornografia é uma escapatória para o erotismo. Quando meu desejo de trepar é muito grande, me masturbo; às vezes o desejo fica ainda mais satisfeito com as imagens e os sons da pornografia. Não sei se a pornografia satisfaz meu erotismo, mas pelo menos me livra das minhas urgências... Dworkínculo: Mas a que preço? Ela me ensina a desejar a dominação, a erotizar o controle, a gostar do jogo de provocar e conquistar. Eu acho que a pornografia é um desperdício de erotismo. Aquilo que é mais pulsante e que mais nos sacode é colocado à disposição de um roteiro fixo em que eu sou o homem que domina a presa depois que ela me tenta, se insinua, pede para ser dominada e eu a domino. Cada vez que eu vejo uma pornografia, ficam reforçadas as lições de que as mulheres querem ser dominadas, não importa o que elas digam. A pornografia aparece como a autoridade a nos contar o que as mulheres realmente querem... Ritzículo: As mulheres que eu conheci fora da pornografia raramente querem apenas serem dominadas; esta é uma fantasia pornográfica. Dworkínculo: Mas por que é que eu quero dominar as mulheres, possuí-las, fodê-las, tê-las como objeto da minha conquista que me faz sentir fiel aos princípios da minha casta masculina? Ritzículo: Sei lá se eu quero isto tudo... Quero as mulheres, às vezes gosto de dominá-las como na pornografia, a pornografia realiza estes desejos... Dworkínculo: Mas a pornografia enfiou estes desejos em mim! Ritzículo: Não sei se meus desejos foram criados por uma pedagogia pornográfica ou uma matriz misógina ou sei lá o quê. Mas eu desejo sexo e a pornografia me mostra o que eu desejo, mesmo que a pornografia seja o meu desejo por definição. Hoje eu desejo corpos femininos sensuais e lânguidos, não sei de onde isto veio, mas sei que desejo estas coisas. Dworkínculo: Eu aprendi a desejar estas coisas, mas não é só isto que eu aprendi. Ritzículo: O que mais eu aprendi a desejar? Dworkínculo: Eu acho que a pornografia ensina a desejar porque o desejo é contagiante. Não somos alheios às pessoas à nossa volta, aprendemos a ser o que somos olhando outras pessoas e pensando no que elas fazem e no que elas gostam. É por isto que a pornografia pode ser tão eficiente––desejos são aprendidos, aprendemos com as outras pessoas o que é desejável (e o que não pode ser desejável). É uma lição difícil, precisamos anos para aprender e muitas pessoas não aprendem direito––acho que ninguém aprende direito. E, no entanto, talvez nós não tenhamos nenhum desejo a não ser aqueles que aprendemos vendo as outras pessoas desejarem. Para aprendermos a desejar muitas coisas, temos que ter contato com muitas coisas. Temos que ter um regime plural de desejos. Ritzículo: É estranho, parece que nossos desejos não são quase nunca realmente nossos. Dworkínculo: E talvez nenhum elemento da nossa cabeça seja realmente todo nosso. Nossa cabeça é parte de um sistema material de dominação sexual das mulheres que dispõe dos nossos corpos para erotizar o conflito da nossa casta masculina com as mulheres. Uma base desta dominação é que as mulheres são caças, são presas - e a pornografia é uma representação da sedução e da posse. Meus desejos foram forjados em um regime assim; e, no entanto, eles são pelo menos em parte meus. Ritzículo: E o que faço com meus desejos? Reprimo, realizo ou fico em um meio termo morno que é a masturbação? Quando entro no clima da masturbação, só a pornografia me interessa; não penso mais que as diferenças de comportamento sexual são instigantes e como elas podem ser subversivas, não penso mais nos trechos dos livros que me fazem chorar––procuro os trechos de romances em que há alguma coisa que me excite, procuro imagens de sexo ou procuro pensar minha própria pornografia... Dworkínculo: Não, quando eu imagino não é pornografia. Eu sempre imagino uma acontecimento semiplausível na minha vida e... não, é pornografia sim! Ritzículo: É pornografia. Mas sem a pornografia, o que eu faço com os meus desejos: reprimo ou realizo? Olha, Dworkínculo, eu quase sempre estou pronto a entender os desejos sexuais que eu tenho como sendo em grande medida fabricados pela pornografia, que é agente da maneira, que muitas vezes parece frustrante, de como vivemos as coisas eróticas. Há um homúnculo dentro de mim, o Naturínculo, que insiste que meus desejos simplesmente vieram assim. Mas não dou muita trela para ele. Entendo meus desejos como tendo uma história associada com o resto do mundo e, no entanto, desejos aparecem muitas vezes como urgências, como alguma coisa que me impele a fazer alguma coisa. Nestes casos, eu faço o meio termo; mas me pergunto se faz bem ficar na opção morna, melhor seria contratar uma puta e... pronto! Dworkínculo: Acho que contratar uma puta seria reforçar ainda mais o esquema dos desejos que me frustra. Você sabe, Ritzículo, minha agenda é me curar da pornografia. Talvez, eu penso às vezes, se eu começasse a agir com as mulheres de um outro modo; assim, deliberadamente, depois com o tempo o meu próprio comportamento me contagiaria. Eu começaria negociando cuidadosamente com meus desejos e depois aprenderia a não mais me excitar com mulheres que seduzem para serem controladas... Ritzículo: Tenho vontade de trepar. Esta conversa me lembra sexo e, depois que este diálogo começou a ser registrado, dei pra procurar pornografia na rede. Ah... Agora achei um casal trepando em várias posições e ela contando assim: Logo no elevador ele chegou mais perto e a gente começou a se beijar, senti a mão dele entrando por baixo da minha saia e sentindo a minha bundinha. Comecei então a mexer no pau dele por cima do short, que já fazia um volume bem duro e gostoso que me deixou louca. Estava totalmente duro, cada centímetro. Ainda no corredor do prédio a gente se pegava, se beijando e passando a mão um no outro. Quando entramos no ap ele me levou pro o quarto e tirou a camisa, foi ótimo ver o seu tórax, e já ir explorando o corpo dele, era definido e gostoso, nem precisou de mais incentivos pra eu já tirar toda minha roupa, começando pela saia e revelando já minha boceta pra ele. Depois de eu tirar a blusa, ele tirou o short e a cueca e nossa, quando eu vi aquela pica! Dá vontade de gemer só de pensar. Que tesão... Logo falei para ele que era muito tesudo aquilo, que a rola dele estava muito dura. Só de escrever já estou toda molhada. Na hora eu já me virei e fiquei de quatro, com os braços na cama apoiada, oferecendo minha bunda pra ele. E aí senti pela primeira vez a pica dele esfregando ali atrás, estava bem quentinha e me deixava louca, ficamos roçando um no outro assim um bom tempo, ele de pé me encoxando e eu apoiada na cama. Logo ele começou meter então comecei a gemer muito, já estava caindo na cama, falei que o pau dele metia muito bem e não sei se foi impressão, mas senti que ficava mais duro ainda dentro da minha boceta. Ele me pegava pela cintura, o que me deixou excitada até hoje; adoro que peguem na minha cintura e ele metia com força acabando comigo. Leio este relato de uma mulher, vejo as fotos do corpo dela, e o pau fica duro e tenho vontade de me masturbar. Começo a me masturbar até gozar... {pausa} Dworkínculo: Depois de gozar, parece que eu recomeço a pensar naquilo que ficou enfiado debaixo do tapete enquanto eu estava com toda atenção na pornografia. Começo a me perguntar por que esta mulher escreve isto. Exibicionismo, ela diz, isto a excita. Ela escreve o que os homens querem ouvir, talvez ela faça o que os homens querem que ela faça - e talvez esteja aí a excitação dela. Mas parece que o desejo dela não está bem aí, ela não pode ter desejos de satisfazer os desejos dos homens - seus desejos são independentes! Ritzículo: Às vezes, Dworkínculo, parece que você deixa o Naturínculo tomar conta de você. Os desejos dela também são construídos pela pornografia... Dworkínculo: Claro, mas é por isto que dá vontade de promover uma agenda de cura da pornografia. Talvez nós devemos libertar nossos desejos da imagem de sexo: re-erotizar o resto de nossas vidas e deixar nossos desejos estarem presentes em conexão com todo o resto de nossas vidas: enxergar as pessoas ao invés de despedaçar os corpos. Experimentar desejos que não tem roteiro fixo, que não envolvam sedução e conquista, que integrem nossa genitália com nossas emoções específicas com respeito a cada pessoa... Ritzículo: Sim, mas o que fazer enquanto este projeto não acontece? Reprimir meus desejos de gozar vendo corpos sendo possuídos? Olha, Dwor, eu tenho evitado realizar meus sonhos de dominação orientados pela pornografia. Muitas vezes não sinto que não posso fazer o que eu quero porque não quero apenas isto: na maioria das vezes, meus desejos são outros, são desejos de contato com as pessoas. Mas, como posso parar de masturbar com pornografia quando o desejo de sexo puro aparece––ok, eu sei que você acha que sexo puro é uma maneira ruim de tratar os desejos pornográficos, realmente, mas você sabe o que eu quero dizer... Dworkínculo: Sim. Mas olha, Ritz, eu realmente não sei o que devo fazer; a punheta com pornografia me incomoda. Mas me incomoda esta fragmentação que parece parte da maneira masculina de pensar: é como se nossas experiências pudessem ser fraturadas, literalmente seus ossos quebrados, examinamos os pedaços e esquecemos dos ossos, examinamos os ossos e esquecemos do corpo. Me incomoda esta coisa de que meu pau é de um homúnculo, meu coração é de outro. Esta hiperatomização me corrói. Há uma parte de mim que fica esmagada quando vejo imagens de gente trepando, me excito e me masturbo - gente que são corpos sensuais, é o que importa. Queria ter minha vida sexual mais integrada com as coisas que me encantam - queria apenas me excitar com elas. Fico com uma ânsia enorme de me livrar deste legado da pornografia... Ritzículo: Dwor, acho que nós temos medo destes homúnculos que são o Assimmesmo e o Deixaestar. Um medo de deixar de se preocupar e simplesmente se entregar ao que parece que desejamos, como muitos homens dão a impressão de fazer. Mas às vezes eu tenho medo deste medo, tenho medo de corrermos tanto do Assimmesmo e do Deixaestar que acabemos parando de fazer outras coisas, de ter prazer. Dworkínculo: Acho que é possível subverter a minha própria estrutura de desejo desde dentro afirmando algumas coisas, ao invés de apenas proibir a pornografia. Ousar, ousar integrar meu erotismo no resto da minha vida, ousar liberar as energias eróticas de todo o meu corpo - afirmar tanto um prazer corporal não-pornográfico que a pornografia fique parecendo sem cor, desinteressante, pálida diante destas outras experiências... Ritzículo: Bacana Dwor, mas você mesmo disse que os desejos contagiam. Parece que o prazer pornográfico é um prazer que eu posso ter sozinho, sem me comprometer com ninguém, sem depender de ninguém – a não ser talvez de um suporte de imagens aqui e ali. Mas como eu posso reafirmar desejos alternativos dentro de mim sozinho? Dworkínculo: Eu sei, às vezes sinto-me tentado a promover imagens e textos eróticos alternativos; uma espécie de contra-pornografia. Às vezes tento me masturbar pensando em imagens muito diferentes daquelas que a pornografia promove. Tem vezes que dá certo. Ritzículo: Mas a punheta é muito pouca ação afirmativa para empalidecer a atração da pornografia que às vezes toda hora, às vezes uma vez por semana, reaparece! Dworkínculo: Parece que não posso mudar meus desejos sozinho. Tenho tido algumas experiências fantásticas com as mulheres que conheci, sobretudo desde que comecei este tortuoso caminho de me curar da pornografia. Ritzículo: Mas aí há um problema: as mulheres reais tem que oferecer mais prazer, mais erotismo que o que a pornografia oferece para que a pornografia empalideça. Por muitos dias, às vezes semanas, ela empalidece, mas não para sempre. Parece que ela volta a me ocupar. E ela não aparece somente com textos e imagens explicitamente ou implicitamente pornográficas, ela aparece no comportamento que às vezes eu tenho com as mulheres e elas por vezes realimentam meus desejos os mais pornográficos - por exemplo, pedindo assim: me estupra. Eu me pergunto, é claro, de onde vem esta fala... Dworkínculo: A pornografia está na cabeça de todo mundo... Ritzículo: Mas quem disse que as mulheres querem todas se curarem da pornografia? Aquela mulher da rede, por exemplo, pode ser que ela esteja bem feliz com seus desejos (ainda que talvez em 10 anos queira desejar coisas muito diferentes). Dworkínculo: Não quero curar todo mundo da pornografia, este é apenas um projeto para mim mesmo. Claro que não posso me transformar sozinho, mas talvez não precise que toda a humanidade de uma só vez abandone a pornografia - talvez me sejam suficientes apenas alguns gatos pingados em torno de mim; uma massa crítica! Ritzículo: Mas Dwor, se está na cabeça de todo mundo, quem vai me contagiar a cura? Realmente, isto me incomoda muito. Dworkínculo: A cura tem que vir do contágio dos exemplos. Ou seja, há fissuras na ordem pornográfica estabelecida. Proponho que tentemos enfiar a mão, o braço, as pernas (e o pau!) nestas fissuras. Ritzículo: Mas como? As mulheres que pedem para serem estupradas (ou comidas, ou fodidas ou arrebentadas) não podem junto comigo fazer a tal ação afirmativa super-super que vai empalidecer a pornografia porque elas tem uma perna dentro da fissura, mas outra perna fissurada nos roteiros pornográficos! Dworkínculo: É verdade, Ritz, não há ninguém que, sozinha, pode nos conduzir pela mão para fora dos domínios da pornografia. Porém, também penso que ninguém aprendeu apenas os desejos pornográficos. Há outros exemplos em todo mundo; os exemplos que eu intuo quando aparece aquela melancolia pós-pornografia. Não são as mulheres que redimem, mas são os momentos das vidas das pessoas em que elas desconfiam que sua vida erótica fica bitolada e amordaçada pela pornografia - e que elas podem querer mais... Ritzículo: Dwor, tenho medo de Assimmesmo e de Deixaestar. Quase sempre que me masturbo tenho medo de estar desistindo um milímetro ou dois de ter uma vida erótica mais descolada da pornografia. De me agarrar ao prazer de foder, reconhecer que quero isto; reconhecer que o desejo da pornografia é meu e pronto. O resto do mundo terá que se adaptar aos meus desejos... Dworkínculo: Tenho este medo também; eles são fortes e poderosos estes homúnculos. Nos arrastam pelos cabelos. Mas eles prometem muito pouco para o meu futuro; eles oferecem apenas um gozo fácil e a frustração de erotizar uma guerra mesmo que eu não goste de guerra. Eu quero confiar que podemos resistir a esta onda de cinismo que invade tantos homens... Ritzículo: Resistir, vamos resistindo. Mas não me interessa tanto esta erótica da resistência, da denúncia dos nossos desejos. Eu prefiro quando você faz seus discursos pela ação afirmativa, por mais desejos de outros tipos, quando você confia que outras imagens e outras estórias vão me capturar e vão empalidecer a pornografia. Talvez seja possível dissolver a pedagogia pornográfica em um oceano de multipedagogias para os meus desejos... Mas quem vai prover tudo isto? Dworkínculo: Eu quero continuar tentando começar. Tentando ver pessoas para além das suas partes. Tenho medo de Assimmesmo e de Deixaestar, mas noto também que eles não me erotizam - quero peitos, quero bundas, mas não quero me conformar. Não tenho desejo de beijar e abraçar Assimmesmo e nem de dar mordidas em Deixaestar. Nem sequer quero enjaulá-los. Isto me faz perder um pouco da ansiedade. Boto fé que eu posso fazer diferente, pelo menos às vezes. Ritzículo: Às vezes perco a coragem, quero apenas uns desejos satisfeitos. Fica parecendo que sexo é uma arapuca, é um atoleiro: meus desejos são também provação, a parte mais difícil de minha vida. Dworkínculo: Eita, é. Mas parece que nesta parte difícil é que podemos ser um pouco mais livres. No meio dos meus desejos aparece todo tipo de coisa; na maioria das vezes aparece bem mirradinho, mas aparece. É nestes desejos mirrados e incomuns que eu me agarro agora. Pelo menos enquanto eu tiver algum desejo de não mentir. |