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Direitos Gays

DIREITOS GAYS[1 ]

Riki Wilchins

Seguindo de perto a trilha do feminismo, veio outro movimento que estaria indissociavelmente entrelaçado às questões de gênero: o movimento gay.

Na década de 50, Harry Hay, um dos pioneiros no ativismo gay, passou mais de dois anos tentando achar outros quatro homens gays dispostos a se encontrar privadamente, na cidade de Nova Iorque, para discutir suas idéias. Na época, um encontro com mais de dois homossexuais era ilegal. Esse momento era tão repressivo que pouco tempo depois de Hay ter fundado a Mattachine Society, na Los Angeles de 1950, ele expulso de seu próprio grupo por ser um comunista – e então foi chutado do Partido Comunista (junto com sua esposa) por ser gay.

Na verdade, ninguém era gay. A palavra ainda não estava na boca do povo. Tudo que havia era ho-mo-cek-suais, uma palavra que parecia ter 10 sílabas na boca de alguns conservadores.

O que sucedeu é que os poucos homos que havia caíram em um de dois campos: assumido ou militante. Um homossexual assumido era qualquer homem gay que se recusasse a negar publicamente que era gay. Nem pense em anunciar sua preferência sexual. Qualquer pessoa pública que admitisse ser gay, mesmo sob questionamento direto da mídia, imediatamente se tornava um homossexual assumido. Homossexuais militantes eram ainda piores. Eles insistiam em ser abertos sobre sua orientação. E nos anos de 50 e 60, eles eram poucos e estavam distantes um do outro.

Mesmo nos anos de 70 e 80, anunciar publicamente sua preferência sexual, demonstrar afeto publicamente (DAP), usar broches de orgulho gay, mencionar seu amante e desafiar as leis antigay já bastava para que você fosse taxado de militante. No jargão em uso naquele momento, você estaria esfregando sua homossexualidade na cara dxs outrxs. As coisas eram tão difíceis que até mesmo Liberace, um pianista talentoso que se escondia debaixo de uma presença de palco a la [estrangeirismo] super vaidoso que faria Elton John parecer modesto – e cuja homossexualidade foi motivo de piadas públicas por mais de três décadas –, ousou não admitir ser gay.

Não havia debates sobre gays nas forças armadas e, se houvesse, não teria sido “não pergunte, não diga e não insista”, mas mais algo do tipo “não mate, não disseque e não dê sumiço”.

Quando o primeiro lobbysta gay ousou aparecer no Capitólio[2 ], tudo em que as pessoas podiam pensar em conexão com gayzice era sexo. Houve um espanto geral por um homem adulto ter disposição de se tornar assunto de fofoca por toda a capital de seu país por ter efetivamente admitido em público gostar de felação e sexo anal.. Naquele tempo, pouca gente na comunidade gay achava que suas/seus defensores teriam sucesso. O máximo que todo mundo esperava era uma propagandazinha muito necessária e alguma visibilidade para seus assuntos.

Podemos medir o sucesso do ativismo gay tendo em vista que as questões de sexo e gênero quase desapareceram do debate sobre direitos gays. Indo na contramão, até mesmo republicanos conservadores passaram a enquadrar sua homofobia em termos de “direitos especiais”, orientação sexual (quando é sobre quem você deseja e não sobre o que você deseja fazer com essa pessoa) e algo que é tortuosamente referido como “estilo de vida”.

Para o ativismo gay, evitar esterótipos de gênero era impossível por duas razões importantes. A primeira era moral. De comum acordo, o movimento por direitos gays moderno começou no Stonewall Inn, quando drag-queens do Terceiro Mundo e transpessoas de cor se insurgiram contra o departamento de polícia novaiorquino, durante um dos baculejos rotineiros que os canas faziam em bares gays. Além disso, em 1969m casais de caminhoneira/mulherzinha, gays afeminados e drag-queens vinham sendo, desde há décadas, a face pública que uma comunidade fechada apresentava ao hostil mundo hétero.

Essas eram as pessoas “visivelmente queer”, aquelas que não podiam esconder, aquelas que todo mundo, tipo colegas de classe e de trabalho, simplesmente sabia que eram gays. Muitas delas carregavam as cicatrizes para mostrar isso. Então havia dívidas a pagar. Havia um imperativo moral nítido para que o novo movimento gay colocasse as questões de gênero na frente e no centro.

Defensorxs de direitos gays foram muito efetivxs em suas demandas pelo direito de ser “honestx e abertx” sobre quem elxs “realmente são”, apesar de freqüentemente confinar essa expressão à cama, e não a como se parecem, se vestem ou como agem em público. Isso é como demandar o direito a ser gay, mas não o direito de parecer ou agir gay. Como uma Lesbian Avenger me disse, “eu não quero só meu direito de ser uma lésbica, mas também o de ser sapatão”.

Havia uma outra razão prática para abordar o gênero. Em algum momento de suas vidas, provavelmente um terço das pessoas gays transcendeu as normas de gênero de maneiras que levaram outras pessoas a perceberem-nas como gays. Em parte, isso acontece porque o gênero é uma linguagem simbólica. Casais hétero podem localizar todo o conteúdo simbólico feminino de sua relação na mulher, e o conteúdo simbólico masculino no homem. Mas casais gays não têm essa opção.

Nos atos sexuais – um homem chupando seu parceiro, uma lésbica penetrando sua amante –, uma parte da pareja vai estar, inevitavelmente, negociando significados simbólicos associados ao outro sexo. Podemos ver uma fluidez simbólica parecida no flerte queer. Uma caminhoneira típica pode sinalizar sua sexualidade com qualquer quantidade de símbolos masculinos: cabelo curto, braços musculosos, uma voz grave, um casaco esportivo, sapatos largos ou botas, postura corporal agressiva, adornos pesados ou muito contato visual direto.

Isso não significa que num casal lesbiano uma parceira deva ser masculina ou caminhoneira ou “o marido”. O que significa é que no cambiante dá-e-ganha de romance e sexo, uma parceira vai empregar os signos e a linguagem simbólica – atos, postura, atitude, vestuário – da masculinidade. Por tal razão, gaycize e gênero vão estar sempre inseparavelmente entrelaçados.

Símbolos masculinos não são necessariamente masculinos. Um dos paradoxos da linguagem é que a maior parte dos signos não tem que ter nenhum significado em particular. Por exemplo, não há nenhuma conexão necessária entre a palavra “vermelho” e a cor que percebemos como vermelha.

Em todo caso, a homossexualidade mesma é a mais profunda transgressão da regra número um do gênero: garotas dormem com garotos, garotos dormem com garotas. Então, de um ponto de vista prático, é difícil – se não impossível – que ativistas gays demandem o direito à sua orientação sexual sem se engajar em questões de gênero.

Por um tempo, o gênero fez parte da agenda gay. Muitxs ativistas gays, no começo do movimento, entenderam intuitivamente que o gênero está ligado à gayzice de maneiras importantes. Ainda assim, ativistas gays daquele começo, como algumas feministas de então, também eram atacadxs pelos ataques ao gênero vindos de conservadores culturais. Suas mulheres parecem homens. Seus homens agem como mulheres.

Mais uma vez, os conservadores atacaram xs mensageirxs como forma de descredibilizar a mensagem. E como aconteceu no movimento de mulheres, tais ataques atingiram diretamente o temor nacional de que os papéis de gênero tradicionais fossem rompidos. Nos anos 70 e 80, xs gringxs estavam prontxs para debater sobre alguns níveis de direitos para gays, mas elxs eram ativamente hostis contra qualquer coisa que flertasse com a queerzice de gênero. Mulheres sapatonas e homens viados continuaram tão intragáveis como sempre à hegemonia da nação. Naquele momento, eu estava envolvida num grupo comunitário de direitos gays, quando tivemos uma chance de aparecer na tv local. A primeira questão foi quem ia nos representar. A escolha natural era por Melissa, que tinha feito muito do trabalho duro de nos levar até ali, mas Melissa era uma sapatona enorme, malvada – camisa xadrez e tudo. E sabíamos que ela não ia passar pela audiência tradicional de Ohio, ao ver-se de frente à sua primeira realmente lés-bi-ca assumida.

Tenho orgulho em dizer que eventualmente ela foi mesmo a escolhida, mas nossa luta foi um microcosmo do que estava acontecendo com o movimento de direitos gays como um todo. Ativistas responsáveis por muito do sucesso e reconhecimento do início do movimento – camaradas como Melissa, Radical Faeries como Harry Hay e transexuais como Sylvia Rivera, sobrevivente de Stonewall – tornavam-se rapidamente um constrangimento ao seu próprio movimento.

O ataque ao gênero direcionado a ativistas gays por conservadores culturais produziu a mesma reação que teve entre feministas. A/o “novx gay” tinha que parecer mais palatável e mais gênero-normativx. Ativistas por direitos gays começaram a se afastar de questões de gênero e, portanto, da queerzice. O gênero ia deslizar para fora da agenda política do movimento e desaparecer até seu ressurgimento, cerca de 25 anos depois, quando pôde ser isolado de maneira segura como o problema de um outro grupo também minoritário – pessoas transgênero, também conhecidas como transpessoas. Mais que defender drag-queens, fadas e homens afeminados, homens gays reagiram assumindo calorosamente o papel oposto. O “macho gay” emergiu como o novo visual, completado com a ênfase na cultura da hiper-muscularização de academias, que persiste até hoje.

Para muitas lésbicas, era óbvio que essa hostilidade contra homens afeminados bebia do mesmo veio de misoginia que alimentava o ódio às mulheres. Isso deixou as coisas bem complicadas para as lésbicas. De um lado, elas estavam apaixonadamente comprometidas com um feminismo que ainda era muito ambíguo em relação a elas. Por outro lado, elas perceberam que homens gays, no geral, “não sacaram” a óbvia conexão entre homofobia e sexismo.

Para muitas ativistas lesbianas, isso significou ter que escolher entre um movimento ou outro, ou dividir suas energias. Muitas lésbicas simplesmente saíram fora e empenharam seus esforços em grupos menores, comprometidos e dedicados a desenvolver uma lesbiandade feminista coerente. Isoladas tanto de movimentos hegemônicos como de progressistas, tais grupos muitas vezes desenvolveram agendas separatistas radicais que continuam a influenciar muito da teoria e ativismo feminista.

No presente momento, o gênero não é mais discutido como uma questão gay. Você pode navegar nos sites de toda organização gay nacional sem topar com nenhuma menção a caminhoneira/mulherzinha, drag ou afeminação. O gênero como uma questão gay evaporou do discurso civil. Apesar de o gênero ter se tornado, efetivamente, o novo gay, não é educado mencioná-lo na frente das visitas.

Xs ativistas por direitos gays responderam aos ataques conservadores com a ênfase na normalidade dxs homossexuais. Nós somos como pessoas hétero, só que dormimos com alguém do mesmo sexo. Essa estratégia foi muito bem sucedida. Só que calhou de ser baseada em falsas assunções. Isso deixou a comunidade gay com sua cota de generofobia internalizada. Não é raro encontrar, em anúncios de relacionamento, “só responda se parecer e agir como hétero”, ou “caminhoneiras, não respondam”. Queens reluzentes, sapatas toscas e bichinhas qua-quá ainda são um assunto cheio de pontas. Para muitos homens gays, o gênero é outro armário de onde sair.

Vejo isso em meu trabalho. Quando falo para grupos de homens gays jovens, eles se esforçam muito para mostrar como me aceitam, e como discutem confortavelmente minhas questões de gênero.

Muitas vezes eu os desaponto perguntando perguntando sobre as questões de gênero deles. Eles não têm nada a ver com isso. Todos os homens que eles conhecem são tão sarados quanto o Vin Diesel, e todas as mulheres são femininas como a Britney Spears. Eles não têm nenhum disco da Barbara Streisand, não assistem filmes da Bettie Davis, não sabem quem é Stephen Sondheim, nem têm o menor interesse em moda, cabelo ou itens badalados de design para decoração.

Então os convido a participar de um experimentozinho. “Quantos homens nessa ala são gays?” – todas as mãos se levantam.

“Quantos homens aqui são passivos?” – todas as mãos se abaixam. Rapidamente. Então todos se olham entre si e começam a gargalhar.

“Então, vocês têm questões de gênero. Isso, ou todo mundo nessa sala vai ficar celibatário até que pelo menos uma bicha assumida se mude pra essa cidade”.

Daí temos uma conversa maravilhosa sobre as questões deles, inclusive sobre por que seria tão humilhante para um homem admitir que, muuuuito de vez em quando, ele joga como zagueiro, ao invés de atacante.

Esse assunto é muito pesado. Geralmente o que se revela é que a razão de ser tão humilhante é que o passivo é visto como feminina – o papel da mulher. Também vem à tona que mesmo os caras mais viris já foram alguma vez insultados na escola, ou tiveram que se fazer de machões no trabalho.

O que me intriga é como essa discussão, tão obviamente necessária, foi tão adiada entre homens que são, em outros aspectos, sofisticados e atentos.

Uma vez fiz uma apresentação do Gender PAC? para um casal poderoso de Los Angeles. Eles falaram muito pouco, e eu senti que não estava me conectando. Enquanto me esperavam terminar, eles permaneceram inexpressivos e quietos. Aí foi que aconteceu a coisa mais interessante.

Um virou para o outro e disse “isso explica porque eu sempre me sentia tão humilhado quando minha mãe me fazia segurar sua bolsa no balcão, na frente de todo mundo, enquanto ela procurava moedas”.

O outro respondeu: “isso não é nada. Eu faltava a aula de educação física sempre que era treino de baseball[3 ] porque os outros caras da turma ficavam me zuando, dizendo que eu jogava 'como uma garota'”.

Eles conversavam um com o outro, como se eu nem estivesse lá. Eles eram dois homens bem sofisticados, completamente assumidos, socialmente ativos, amantes há anos. Ainda assim, havia esse pedaço enorme de suas vidas sobre o qual nunca tinham falado um para o outro, e que ainda era uma fonte importante de constrangimento.

Às vezes, fazer ativismo de gênero parece fazer terapia. Quase todo mundo tem histórias como a que esse casal contou, mas porque gênero é uma questão tão pessoal, pensamos que nossa experiência reflete nosssas desvantagens íntimas, próprias. Somos ridicularizadxs por sermos nerdes ou bichas ou por jogar “como uma garota”, ou éramos agressivas e atléticas demais, ou muito velhas pra ser tão joãozinho.

Quando essas coisas aconteciam, achávamos que nós éramos o problema, mas não o sistema de gênero. Guardamos isso em segredo e sentimos vergonha. E porque a expressão de gênero nunca foi moldada diferentemente, a ponto de ser um direito civil, isso nunca nos ocorreu.

Fazer do gênero uma questão de direitos permite às pessoas assimilar como cada qual de nós é punidx por não se encaixar nos papéis e esterótipos de gênero. Você as permite ser tudo o que são, independentemente de outras pessoas acharem-nas generadamente aceitáveis ou não. Hoje em dia, ser gay é aceitável, mas ainda não é ok ser bicha. Você pode ser uma lésbica, mas não uma sapatão.

Mesmo assim, ainda não há um clamor da parte de ativistas gays ou lésbicas para uma sublevação contra a intolerância de gênero. Na verdade, o que mais há é indiferença. Se há algum interesse nisso, ele está restrito às pessoas transgênero, como se gênero fosse uma questão que afetasse só a pequena minoria de gente que quer mudar seus corpos ou gêneros. A inclusão de gente transgênero dispensa todo o resto do pessoal de ter que prestar atenção nas questões mais amplas de gênero, referentes a gays ou feministas.

Desconfio que haja duas razões para essa recusa. A primeira é que transcender as normas de gênero ainda é motivo pessoal de vergonha. A falta de domínio sobre seu gênero é como a falta de domínio sobre o higiene pessoal. Se as pessoas não dão conta de dizer se você é menino ou menina, elas ficam desconfortáveis e/ou iradas, e você se sente humilhadx e constrangidx. Em segundo, o sucesso daqueles dois movimentos envolveu uma distinção entre o que “queremos” e quem somos. Nossas questões podem ser radicais, mas nós não somos. Nós somos medianos, gente de bem como você. Não somos tão diferentes.

Mas isso não dá certo com o gênero. Ultrapassar seus limites tem a ver, necessariamente, com diferença. A defesa pró-direitos de gênero é sobre o direito de ser diferente.

Quando volto de Washington para casa, em South Beach, muitas vezes enceno, sem querer, vários papéis de gênero diferentes num mesmo dia. [...]

Eu costumava reclamar, à minha amante, por me sentir bizarra, uma farsa, por ser vista em todas essas formas tão diferentes. O conselho dela? “Você está finalmente usando todas as suas vozes”.

Duvido que possamos sonhar com a cura da homofobia ou do sexismo se evitamos uma discussão sobre gênero. Como Marie Wilson, da Fundação Ms., me disse uma vez, “estereótipos de gênero – eles são a base de tudo isso”.

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notas da tradutora:

[1] Tradução feita por tatiana nascimento dos santos do segundo capítulo de WILCHINS, Riki. Queer Theory, Gender Theory: an instant primer. Los Angeles, Alisson Books: 2004. Tradução para estudos na disciplina Feminismos e Teoria Queer, do Nedig – Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero (edição de 2011).

[2] Congresso dos U$A.

[3] Esporte típico nos U$A, mas com grandes ligas/atletas em Cuba.

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Pagina modificada em 15 de July de 2013, às 02h52