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Pensamento Hetero

Monique Wittig (1980)1

Em anos recentes em Paris, a linguagem enquanto fenómeno tem dominado os sistemas teóricos modernos e as ciências sociais,
e entrou nas discussões políticas dos movimentos de libertação das lésbicas e das mulheres. Tal acontece porque a linguagem
relaciona-se com um importante campo político onde o que está em jogo é o poder, ou, mais ainda, uma rede de poderes, uma vez que existe uma
multiplicidade de linguagens que constantemente agem sobre a realidade social. A importância da
linguagem enquanto tal como um interesse no jogo político foi apenas recentemente percebida2.
Mas o gigantesco desenvolvimento da linguística, a multiplicação das escolas linguísticas, o advento
das ciências da comunicação, e o tecnicalismo das metalinguagens que estas ciências utilizam, representam os sintomas da importância daquilo que está em jogo
politicamente.

A ciência da linguagem invadiu outras ciências, como a antropologia através de Levi-Strauss, a psicanálise através de Lacan, e
todas as disciplinas que se desenvolveram com base no estruturalismo. A semiologia de Roland Barthes na sua fase inicial quase escapou
ao domínio da linguística para tornar-se uma análise política dos diferentes sistemas dos signos, para estabelecer
uma relação entre este ou aquele sistema de signos - por exemplo, os mitos da classe da pequena burguesia - e a luta de classes dentro do
capitalismo que esse sistema tende a ocultar. Fomos quase salvas, pois a semiologia política é uma arma (um método) de que precisamos para analisar aquilo a que se chama a ideologia. Mas o milagre não durou. Em vez de introduzir na semiologia conceitos que lhe são estranhos – neste caso os conceitos do Marxismo - Barthes rapidamente declarou que a semiologia era apenas um ramo da linguística e que a linguagem era o seu único objectivo.

Assim, o mundo inteiro é apenas um grande registo onde as mais diversas linguagens surgem, sendo registadas, tal como a linguagem
do Inconsciente3, a linguagem da moda, a linguagem da troca das mulheres onde seres humanos são literalmente os signos utilizados para comunicar. Estas linguagens, ou melhor, estes discursos, encaixam uns nos outros, interpenetram-se, apoiam-se uns aos outros, reforçam-se uns aos outros, auto originam-se, e dão origem uns aos outros. A linguística dá origem à semiologia e à linguística estrutural, a linguística estrutural dá origem ao estruturalismo que por seu lado dá origem ao Inconsciente Estrutural. O conjunto destes discursos produz uma estática confusa para o(a)s oprimido(a)as, que o(a)s faz perder de vista a causa material da sua opressão e o(a)s lança numa espécie de vácuo a-histórico.

Porque esses discursos produzem uma leitura científica da realidade social na qual os seres humanos são dados como invariantes,
não tocados pela história e não trabalhados por conflitos de classe, com psiques idênticas porque geneticamente programadas. Esta psique, igualmente intocada pela história e não trabalhada por conflitos de classe, fornece aos especialistas, desde o princípio do século XX, um arsenal inteiro de invariantes: a linguagem simbólica que, muito vantajosamente, funciona com muito poucos elementos, já que, como os dígitos (0-9), os símbolos "inconscientemente" produzidos pela psique não são muito numerosos. Assim, estes símbolos são muito fáceis de serem impostos, através da terapia e da teorização, ao inconsciente colectivo e individual. Ensinam-nos que o inconsciente, com perfeito bom gosto, se estrutura por metáforas, por exemplo, o nome-do-pai, o complexo de Édipo, a castração, o assassínio-ou-morte-do-pai, a troca de mulheres, etc. Se o Inconsciente é fácil de controlar, não o é, porém, por qualquer pessoa. À semelhança das revelações místicas, a aparição dos símbolos na psique exige interpretações múltiplas. Apenas os especialistas conseguem decifrar o inconsciente. Apenas eles, os psicanalistas, podem (são autorizados?) a organizar e interpretar manifestações psíquicas que mostrarão o símbolo no seu significado pleno. E, enquanto que a linguagem simbólica é extremamente pobre e na sua essência cheia de lacunas, as linguagens ou metalinguagens que a interpretam estão-se a desenvolver, cada uma delas, com uma riqueza, um aparato, que até agora apenas as exegeses lógicas conseguiram igualar.

Quem deu aos psicanalistas o seu conhecimento? Por exemplo, para Lacan, aquilo a que ele chama o "discurso psicanalítico",
ou a "experiência analítica", ambos lhe "ensinam" aquilo que ele já sabe. E cada um lhe ensina aquilo que o outro lhe ensinou. Mas quem irá negar que Lacan descobriu cientificamente, através da "experiência analítica" (de alguma forma uma experiência) as estruturas do Inconsciente? Quem será suficientemente irresponsável a ponto de ignorar os discursos das pessoas psicanalizadas deitadas nos seus divãs? Na minha opinião não há dúvida que Lacan encontrou no inconsciente as estruturas que disse que lá encontrou, pois tinha-as previamente posto lá. As pessoas que não cairam sob o poder da instituição psicanalítica poderão sentir uma incomensurável sensação de tristeza perante o grau de opressão (de manipulação) que os discursos psicanalizados demonstram. Na experiência psicanalítica há uma pessoa oprimida, a pessoa psicanalizada, cuja necessidade de comunicação é explorada e que (da mesma maneira que as bruxas podiam, sob tortura, apenas repetir a linguagem que os inquisidores queriam ouvir) não tem outra hipótese (se não quer destruir o pacto implícito que lhe permite comunicar e de que precisa) senão tentar dizer o que é suposto ser dito. Dizem que isto pode durar uma vida inteira - cruel contrato que constrange um ser humano a exibir o seu infortúnio a um opressor que é directamente responsável por esse infortúnio, que o(a) explora económica, política e ideologicamente e cuja interpretação reduz esse infortúnio a umas quantas figuras de retórica.

Mas poderá a necessidade de comunicação que este contrato implica ser satisfeita apenas na situação psicanalítica,
no ser curada(o) ou usada(o) como "experiência"? Se acreditarmos em testemunhos recentes4 de lésbicas, feministas e homossexuais masculinos, tal não é o caso. Todos estes testemunhos sublinham o significado político da impossibilidade enfrentada por lésbicas, feministas e homossexuais na sua tentativa de comunicar na sociedade heterossexual, a não ser com um psicanalista. Ao compreender o estado geral das coisas (a pessoa não está doente nem procura a cura, tem um inimigo) o resultado é que a pessoa oprimida quebra o contrato psicanalítico. Isto é o que aparece nos testemunhos, juntamente com o ensinamento que o contrato psicanalítico não era um contrato feito com consentimento mas um contrato forçado.

Os discursos que acima de tudo nos oprimem, lésbicas, mulheres, e homens homossexuais, são aqueles que tomam como certo
que a base da sociedade, de qualquer sociedade, é a heterossexualidade5. Estes discursos falam sobre nós e alegam dizer a verdade num campo apolítico, como se qualquer coisa que significa algo pudesse escapar ao político neste momento da história, e como se, no tocante a nós, pudessem existir signos politicamente insignificantes. Estes discursos da heterossexualidade oprimem-nos no sentido em que nos impedem de falar a menos que falemos nos termos deles. Tudo quanto os põe em questão é imediatamente posto de parte como elementar. A nossa recusa da interpretação totalizante da psicanálise faz com que os teóricos digam que estamos a negligenciar a dimensão simbólica. Estes discursos negam-nos toda a possibilidade de criar as nossas próprias categorias. Mas a sua acção mais feroz é a implacável tirania que exercem sobre os nossos seres físicos e mentais.

Ao usarmos o termo demasiado genérico "ideologia" para designar todos os discursos do grupo dominante, relegamos estes
discursos para o domínio das Ideias Irreais; esquecemos a violência material (física) que directamente fazem contra as pessoas oprimidas, violência essa produzida pelos discursos abstractos e "científicos", assim como pelos discursos dos mass media. Gostaria de insistir na opressão material dos individuos pelos discursos, e gostaria de sublinhar os seus efeitos imediatos através do exemplo da pornografia.

As imagens pornográficas, os filmes, as fotos de revistas, os posters publicitários que vemos nas paredes das cidades, constituem
um discurso, e este discurso cobre o nosso mundo com os seus signos, e este discurso tem um significado: significa que as mulheres são dominadas. Os semióticos podem interpretar o sistema deste discurso, descrever a sua natureza. O que eles lêem nesse discurso são signos cuja função não é significar e que não têm qualquer razão de ser excepto a de serem elementos de um certo sistema ou natureza. Mas para nós este discurso não está divorciado do real tal como está para os semióticos. Este discurso não só mantém uma relação muito próxima com a realidade social que é a nossa opressão (económica e politicamente) mas, igualmente, é em si próprio real já que é um dos aspectos da opressão, já que exerce um poder bem definido sobre nós. O discurso pornográfico é uma das estratégias de violência que são exercidas sobre nós: ele humilha, ele avilta, ele é um crime contra a nossa "humanidade". Como técnica de assédio tem uma outra função, a de ser um aviso. Ordena-nos que nos mantenhamos na linha e mantém na linha aquelas que teriam tendência a esquecer quem são; esse discurso chama o medo. Estes peritos em semiótica a que nos referimos previamente censuram-nos por confundirmos os discursos com a realidade, quando nos manifestamos contra a pornografia. Não vêem que este discurso é a realidade para nós, uma das facetas da realidade da nossa opressão. Acreditam que estamos enganadas no nosso nível de análise.

Escolhi a pornografia como exemplo porque o seu discurso é o mais sintomático e o mais demonstrativo da violência
que nos é feita através de discursos, assim como na sociedade em geral. Não há nada de abstracto acerca do poder que as ciências e as teorias têm de agir materialmente e na realidade sobre os nossos corpos e as nossas mentes, mesmo se é abstracto o discurso que produz esse poder. É uma das formas de domínio, a sua própria expressão, como disse Marx. Eu diria, alternativamente, um dos seus exercícios. Todos os oprimidos conhecem este poder e têm de lidar com ele. É aquele que diz: não tens o direito de falar porque o teu falar não é científico e não é teórico, estás a um nível errado de análise, estás a confundir discurso e realidade, o teu discurso é ingénuo, compreendes mal esta ou aquela ciência.

Se o discurso dos sistemas teóricos modernos e da ciência social exercem poder sobre nós, é porque esse discurso trabalha com
conceitos que nos tocam de perto. Apesar do advento histórico dos movimentos de libertação lésbica, feminista e gay, cuja acção já transtornou as categorias filosóficas e políticas dos discursos das ciências sociais, as suas categorias (assim brutalmente postas em questão) são no entanto utilizadas, sem serem examinadas, pela ciência contemporânea. Essas categorias funcionam como primitivos conceitos num aglomerado de toda a espécie de disciplinas, teorias e ideias correntes a que chamarei o pensamento hetero (Ver o Pensamento Selvagem de Claude Levi-Strauss) Dizem respeito a "mulher", "homem", "sexo", "diferença", e a toda a série de conceitos que carregam esta marca, incluindo conceitos tais como "história", "cultura", e o "real". E embora tenha sido aceite em anos recentes que não existe semelhante coisa como a natureza, que tudo é cultura, permanece dentro dessa cultura um cerne de natureza que resiste a ser examinado, uma relação excluída do social na análise - uma relação cuja característica é inescapável na cultura, assim como na natureza, e que é a relação heterossexual. Chamar-lhe-ei a relação social obrigatória entre "homem" e "mulher" (Aqui refiro-me a Ti-Grace Atkinson e à sua análise do coito como uma instituição6.) Com a sua inescapabilidade erigida em conhecimento, em princípio óbvio, em dado pré-adquirido a qualquer ciência, o pensamento hetero desenvolve uma interpretação totalizante da história, da realidade social, da cultura, da linguagem e simultâneamente de todos os fenómenos subjectivos. Posso apenas sublinhar o caracter opressivo de que se reveste o pensamento hetero na sua tendência para imediatamente universalizar a sua produção de conceitos em leis gerais que se reclamam de ser aplicáveis a todas as sociedades, a todas as épocas, a todos os indivíduos. Assim, fala-se de conceitos como a troca de mulheres, a diferença entre os sexos, a ordem simbólica, o Inconsciente, Desejo, jouissance, Cultura, História, dando um significado absoluto a estes conceitos, quando são apenas categorias fundadas sobre a heterossexualidade, ou sobre um pensamento que produz a diferença entre os sexos como um dogma político e filosófico.

          A consequência desta tendência para a universalidade é que o pensamento hetero não pode conceber uma cultura, 
uma sociedade onde a heterossexualidade não ordenaria não só todas as relações humanas mas também a sua própria produção de conceitos e também todos os processos que escapam ao consciente. Além disso, estes processos inconscientes são historicamente cada vez mais imperativos naquilo que nos ensinam sobre nós próprio(a)s através da instrumentalidade dos especialistas. A retórica que expressa estes processos (e cuja sedução eu não subestimo) reveste-se de mitos, recorre ao enigma, caminha pelo acumular de metáforas, e a sua função é a de poetisar o caracter obrigatório do "serás-hetero-ou-não-serás".

Segundo este pensamento, rejeitar a obrigação do coito e das instituições que esta obrigação produziu como sendo necessárias
para a constituição de uma sociedade, é simplesmente uma impossibilidade, já que proceder assim significaria rejeitar a possibilidade da constituição do outro e rejeitar a "ordem simbólica", tornar a constituição do significado impossível, sem o qual ninguém pode manter uma coerência interna. Assim, o lesbianismo, a homossexualidade e as sociedades que formamos não podem ser pensados nem falados, embora sempre tivessem existido. Assim, o pensamento hetero continua a afirmar que é o incesto, e não a homossexualidade, o seu maior tabu. Assim, pelo pensamento hetero, a homossexualidade não passa de heterossexualidade.

Sim, a sociedade hetero está baseada na necessidade, a todos os níveis, do diferente/outro. Não pode funcionar economicamente,
simbolicamente, linguisticamente ou politicamente sem este conceito. Esta necessidade do diferente/outro é uma necessidade ontológica para todo o aglomerado de ciências e disciplinas a que chamo o pensamento hetero. Mas o que é o diferente/outro se não a(o) dominada(o)? A sociedade heterossexual é a sociedade que não oprime apenas lésbicas e homossexuais, ela oprime muitos diferentes/outros, oprime todas as mulheres e muitas categorias de homens, todas e todos que estão na posição de serem dominadas(os). Para constituir uma diferença e controlá-la é um “acto de poder, uma vez que é essencialmente um acto normativo. Todos tentam mostrar o outro como diferente. Mas nem todos conseguem ter sucesso a fazê-lo. Tem que se ser socialmente dominante para se ter sucesso a fazê-lo”7. Por exemplo, o conceito de diferença entre os sexos constitui ontologicamente as mulheres em diferentes/outras. Os homens não são diferentes, os brancos não são diferentes, nem o são os senhores. Mas os pretos, tal como os escravos, são-no. Esta característica ontológica da diferença entre os sexos afecta todos os conceitos que integram o mesmo aglomerado. Mas para nós não existe semelhante coisa que seja ser‑mulher ou ser-homem. "Homem" e "mulher" são conceitos políticos de oposição, e a cópula que dialecticamente os une é, simultâneamente, aquela que irá abolir os homens e mulheres8. É a luta de classes entre mulheres e homens que abolirá os homens e as mulheres9. Não há nada de ontológico no conceito de diferença. É a única maneira como os senhores interpretam uma situação histórica de domínio. A função da diferença é a de ocultar a todos os níveis os conflitos de interesse, incluindo os conflitos ideológicos. Por outras palavras, para nós, isto significa que não podem mais existir mulheres e homens, e que enquanto classes e categorias de pensamento ou linguagem eles têm de desaparecer, política, económica, ideologicamente. Se nós, lésbicas e homossexuais, continuarmos a falar de nós próprias(os) e a conceber-nos como mulheres e como homens, estamos a ser instrumentais na manutenção da heterossexualidade. Tenho a certeza que uma transformação económica e política não irá desdramatizar estas categorias da linguagem. Podemos redimir escravo? Podemos redimir escarumba? Em que medida é a mulher diferente? Continuaremos a escrever branco, senhor, homem? A transformação das relações económicas não será suficiente. Temos de produzir uma transformação política dos conceitos chave, isto é dos conceitos que nos são estratégicos. Porque há uma outra ordem de materialidade, a da linguagem, e a linguagem é trabalhada de dentro por estes conceitos estratégicos. A linguagem é, ao mesmo tempo, intimamente ligada ao campo político, onde tudo o que concerne a linguagem, a ciência e o pensamento se refere à pessoa enquanto subjectividade e à sua relação com a sociedade10. E não podemos deixar estas coisas no poder do pensamento hetero ou do pensamento de dominação.

Se, de entre todas as produções do pensamento hetero questiono particularmente o estructuralismo e o Inconsciente Estrutural
é porque: no momento histórico em que o domínio sobre os grupos sociais já não pode parecer uma necessidade lógica aos olhos das(os) dominadas(os), porque estas(es) se revoltam, porque estas(es) questionam as diferenças, Lévi-Strauss, Lacan e outros invocam necessidades que escapam ao controlo do consciente e portanto à responsabilidade dos indivíduos.

Por exemplo invocam processos inconscientes, os quais exigem a troca de mulheres como condição necessária para cada sociedade.
De acordo com esses autores é isso o que o inconsciente nos diz com autoridade, e a ordem simbólica, sem a qual não existe significado, linguagem, sociedade, depende do inconsciente. Mas o que significa a troca de mulheres se não que são dominadas? Não é pois de admirar que haja apenas um inconsciente e que esse seja heterossexual. É um inconsciente que proteje demasiado conscientemente os interesses dos senhores11 nos quais vive para que estes possam facilmente ser despojados dos seus conceitos. Além disso, o domínio é negado, não existe a escravidão das mulheres, existe a diferença. Ao que responderei com esta frase de um camponês romeno numa assembleia pública em 1848: "Porque dizem os senhores que não se tratou de escravidão, uma vez que nós sabemos que foi escravidão, este sofrimento que sofremos". Sim, sabemo-lo, e esta ciência da opressão não nos pode ser tirada.

É a partir desta ciência que temos de descobrir o rosto “óbvio” do heterossexual, e (parafraseando o Roland Barthes inicial)
não deveremos suportar "verem-se constantemente confundidas Natureza e História"12. Temos de tornar brutalmente claro que o estructuralismo, a psicanálise e particularmente Lacan transformaram rigidamente os seus conceitos em mitos - a Diferença, o Desejo, o Nome-do-pai, etc. Estes psicanalistas até "sobre-mitificaram" os mitos, uma operação que lhes era necessária para sistematicamente heterossexualizarem aquela dimensão pessoal que repentinamente surgiu no campo histórico através dos indivíduos dominados, particularmente através das mulheres, que encetaram a sua luta há quase dois séculos. E isto tem sido feito sistematicamente numa concertação de interdisciplinaridade, nunca mais harmoniosamente do que quando os mitos heterossexuais começaram a circular com à-vontade de um sistema formal para outro, como valores certos e seguros que podem ser investidos na antropologia como na psicanálise e em todas as ciências sociais.

Este conjunto de mitos heterossexuais é um sistema de signos que usa figuras de retórica, e por isso pode ser estudado
politicamente de dentro da ciência da nossa opressão; "pois-sabemos-que-foi-escravidão" é a dinâmica que introduz o diacronismo da história no discurso pré-estabelecido das essências eternas. Esta tarefa deveria ser de algum modo uma semiologia política, embora, com este "sofrimento que sofremos", trabalhemos também ao nível da linguagem/manifesto, da linguagem/acção, tudo o que transforma, tudo o que faz história.

No entretanto, nos sistemas que pareciam tão eternos e universais que se lhes podiam extrair leis, leis que podiam ser
enfiadas em computadores, e em todo o caso, para já, enfiadas no mecanismo inconsciente, nestes sistemas, graças à nossa acção e à nossa linguagem, estão a acontecer deslocações de enfoques. Um modelo tal como, por exemplo, a troca de mulheres, re-submerge a história de modo tão violento e brutal que o sistema inteiro, que se acreditava fosse formal, desaba para outra dimensão do conhecimento. Esta dimensão da história pertence-nos, já que de algum modo fomos designadas e uma vez que, como disse Levi-Strauss, falamos, vamos dizer que quebramos o contrato heterossexual.

Portanto, isto é o que dizem as lésbicas neste país e nalguns outros, se não com teorias então pelo menos através da sua
prática social, cujas repercussões na cultura e sociedade hetero são ainda incalculáveis. Um antropólogo poderá dizer que temos de esperar 50 anos. Sim, se se quiser universalizar o funcionamento destas sociedades e fazer com que apareçam as suas invariantes. Entretanto os conceitos hetero são minados. O que é a mulher? Pânico, alarme geral para uma defesa activa. Francamente, este é um problema que as lésbicas não têm por causa de uma mudança de perspectiva, e seria incorrecto dizer que as lésbicas se associam, fazem amor, vivem com mulheres, pois "mulher" tem significado apenas em sistemas de pensamento heterossexuais e em sistemas económicos heterossexuais. As lésbicas não são mulheres.

(Monique Wittig, The Straight Mind and other Essays, Boston: Beacon, 1992)

Notas

1. Este texto foi lido pela primeira vez em New York na Modern Language Association Convention em 1978 e dedicado às lésbicas americanas

2. Todavia, os Gregos clássicos saiam que não existia poder político sem domínio da arte da retórica, sobretudo na democracia.

3. Ao longo deste artigo, quando se refere o uso de Lacan do termo “o inconsciente” ele é posto em maiúsculas, seguindo o seu estilo.

4. Por exemplo, ver Karla Jay, Allen Young, eds Out of the Closets (New York: Links Books, 1972)

5. Heterossexualidade: uma palavra que apareceu pela primeira vez na língua francesa em 1911.

6. Ti-Grace Atkinson, Amazon Odyssey (New York: Links Books, 1974), pp.13-23.

7. Claude Faugeron and Phillipe Robert, La Justice et son Public et les représentations sociales du systeme pénal (Paris: Masson, 1978)

8. Ver para a sua definição de “sexo social” Nicole-Claude Mathieu, “Notes pour une définition sociologique des categories de sexe”, Epistemologie Sociologique II (1971)

9. Do mesmo modo que para qualquer luta de classes em que as categorias de oposição são “reconciliadas” pela luta cujo objectivo é fazê-las desaparecer.

10. Ver Christine Delphy, “Pour un Féminisme Matérialiste,” l’Arc 61 Simone de Beauvoir et la lutte des femmes, que aparece em Feminist Issues.

11. São os milhões de dólares ganhos pelos psicanalistas todos os anos simbólicos?

12. Roland Barthes, Mythologies (New York: Hill and Wang, 1971), p.11

(retirado do site girl ilga)

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